Passado e presente: monopólio e silêncio nas representações dos trabalhadores escravizados ! Em O escravismo colonial, publicado em 1979, o historiador marxista Jacob Gorender lembrava que, nas representações e interpretações historiográficas, o trabalhador escravizado ocupou, antes da Abolição e décadas após ela, status correspondente à situação social que conhecera na escravidão brasileira. Até praticamente os anos 1960, foi abismal a discrepância entre o papel social objetivo do cativo na formação social brasileira e as suas representações na História. (GORENDER: [1979, p.49.) Paradoxo que contraditava com o papel social dominante do cativo, primeiro americano, a seguir negro-africano, até praticamente 1888. Mesmo quando integrado às reconstruções historiográficas luso-brasileiras, o cativo o foi, em geral, enquanto objeto, sem participar essencialmente dessas explanações. Foi também profunda a desqualificação do trabalhador escravizado na historiografia lusitana, que rara e escassamente referiu-se à contribuição do negro-africano e à importância do tráfico negreiro na história de Portugal. Nas reconstituições gerais portuguesas, a importância dos cativos mouros e negro-africanos foi fortemente ignorada. As duas primeiras obras acadêmicas de referência sobre a escravidão negra em Portugal foram escritas, respectivamente, por um brasileiro, José Ramos Tinhorão, e por um inglês, A.C. Saunders. SAUNDERS: 1994.) Facilmente observável nos relatos históricos, esse fenômeno foi comum a praticamente todos os outros grandes domínios ideológicos lusitanos, luso-brasileiros e brasileiros. Essa realidade é notável no domínio estético [ficção em prosa e verso; dramaturgia; artes plásticas; música; arqueologia; arquitetura, etc.] e, no campo cognitivo, na historiografia e demais ciências sociais, com destaque para as ciências da linguagem. Tratou-se de fenômeno unitário, geral e duradouro. No relativo ao Brasil, é sintomático não existir até hoje um só romance histórico sobre a escravidão, digno do nome. E que, apenas nos últimos anos, empreendem-se escassos levantamentos arqueológicos referentes ao escravismo -quilombos, senzalas, "cemitérios de negros", etc. Sobretudo a partir dos anos 1850, nos romances brasileiros, o cativo deixou de ser pano de fundo ou figurante mudo apenas quando a escravidão transformou-se na grande questão políticosocial. Então, a literatura ficcional em prosa propagou o perigo do "escravo", sobretudo em meio urbano e no seio da família proprietária. Narrativa que participava do esforço para transferir aqueles trabalhadores para a produção cafeeira, sedenta de braços. Apenas CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. ! 1 ! Florence Carboni, licenciou-se e doutorou-se em Linguística pela UCL, Bélgica. É professora do PPGLet da 1 UFRGS. e-mail:
[email protected] ! Mário Maestri, licenciou-se e doutorou-se em Ciências Históricas pela UCL, Bélgica. É professor titular do 2 PPGH da UPF. e-mail:
[email protected] a partir dos anos 1860, o cativo começou a ser expressado, em algumas de suas necessidades históricas fundamentais, pela narrativa ficcional em verso e prosa, já como parte do esforço emancipacionista e abolicionista. (CONFORTO: 2012.) No relativo às realidades linguageiras e discursivas dos trabalhadores escravizados e sua contribuição na rica variedade do português brasileiro, a ausência de conhecimento histórico é ainda mais abismal, limitando-se para o passado a algumas escassas produções, como a gramática da língua quimbundo, redigida pelo padre jesuíta Pedro Dias em final do século 17, Arte da lingoa de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, na época da destruição dos quilombos de Palmares, e a um manual prático da língua mina, Obra nova da lingoa geral de mina, traduzida, ao nosso Idioma por Antonio da Costa Peixoto, Nacional do Reino de Portugal, da Província de Entre Douro e Minho, do concelho de Filgueiras (1741), supostamente dominante entre os cativos da mineração, escrito pelo português Antonio da Costa Peixoto para uso dos escravistas, publicado somente na metade do século 20. Costa Peixoto escrevera, anteriormente, Alguns apontamentos da lingoa Minna com as palavras portuguezas correspondentes" (1731), esboço do primeiro trabalho. Os dois manuscritos foram editados em Portugal, em 1944. (CARBONI: 2009. P. 90-91; ARAÚJO: 2013.) Esse último estudo registrou fenômenos de mescla entre as línguas africanas e dessas línguas com o português. (BONVINI: 2008, p. 33-39.) É revelador as lamentações de intelectuais como Sílvio Romero e Nina Rodrigues, no final do século 19, de que "no Brasil se houvesse descurado completamente o estudo das línguas africanas faladas pelos escravos negros". (RODRIGUES : 1977, p. 122.) No clima de centralismo linguístico que dominou o século 20 no Brasil, os empréstimos, sobretudo lexicais, de línguas africanas na variedade culta da língua nacional, serviram eventualmente e sobretudo para destacar sua diferença em relação à língua portuguesa falada na antiga metrópole. Muitos dos intelectuais que, como Gilberto Freyre, exaltavam "a superioridade de força e […] de beleza de expressão" do português falado e escrito "brasileiramente", "cheio de palavras de origem africana ou tupi-guarani", tendiam a considerar essa mescla nociva para a pureza do português. (FREYRE: 1979, p.7.) ! Caracter Estruturante Mesmo nas últimas décadas, no contexto de políticas afirmativas em relação às comunidades afrodescendentes e, mais especificamente, na política de reconhecimento dos ditos "remanescentes de quilombolas", os muitos estudos, sobretudo sociolinguísticos, dedicados ao tema, tendem a buscar apenas a influência das línguas africanas em variedades de português pretensamente específicas a afrodescendentes, sem enfatizar o caráter estruturante da escravidão no desenvolvimento dos complexos contatos e mesclas entre as variedades de português e as inúmeras línguas e variedades de línguas africanas que foram faladas no Brasil devido ao tráfico negreiro. (CARBONI: 2009, 86.) Apesar da abolição muito tardia da escravidão no Brasil, em 1888, são extremamente raros depoimentos de trabalhadores escravizados. (MAESTRI: 1988) Não há sequer uma memória [conhecida] escrita por trabalhador escravizado ou liberto, durante a escravidão, ou após ela, no Brasil. Entretanto, temos uma breve auto-biografia de cativo que viveu no Brasil, escrita em inglês, e publicada em Detroit, em 1846. (BAQUAQUA, 1446)