CAPÍ TU LO 4
A etnobiologia política no
Brasil e o empoderamento
de povos indígenas e
comunidades locais
Flávia Rosa Santoro, Valdir de Moura Brito-Júnior, Ana
Carolina Ribeiro, Edwine Soares de Oliveira e Rayane Santos
Definição e conceitos de etnobiologia política
A etnobiologia política poderia ser sucintamente definida
como o estudo das diversas dimensões do conhecimento eco-
lógico local – utilitária, ecológica, cognitiva e evolutiva – e de
sua relação com as lutas de comunidades locais e povos tradi-
cionais em defesa de suas práticas, seus territórios e sua pró-
pria existência (Almada & Sanchez, 2024). Assim, os estudos
da etnobiologia política buscam entender como as comunida-
des locais e os povos tradicionais ressignificam seus conheci-
mentos e suas práticas em cenários de conflitos ambientais e
identitários.
A etnobiologia política dialoga com outras áreas da con-
servação, como o ecologismo dos pobres (Alier, 2007), a justi-
ça ambiental (Bullard, 1994), a ecologia decolonial (Ferdinand,
2022) e a ecologia política (Leff, 2003), posto que todas essas
correntes consideram que os impactos socioambientais ex-
perienciados durante o chamado Antropoceno1 não afetam os
diferentes grupos sociais da mesma maneira, recaindo princi-
palmente sobre pessoas de classes baixas, populações rurais
e povos tradicionais. Tais correntes reconhecem a importân-
cia do conhecimento de povos tradicionais na conservação da
biodiversidade e admitem que as ações ditas conservacionistas
– muitas vezes pautadas em políticas neoliberais –, que não
1 Justamente por considerar que, além de serem os mais afetados, são também
os povos tradicionais os que têm menor participação nas causas por trás das
mudanças ambientais contemporâneas, é que alguns autores defendem que
o termo “Antropoceno” (que se refere ao “antrophos”, ou seja, a qualquer ser
humano) deveria ser substituído por Capitaloceno ou mesmo Plantationceno
(Haraway, 2016; Moore, 2017; Ferdinand, 2022). Essa substituição visa distin-
guir os diferentes grupos humanos quanto à responsabilidade sobre as atuais
mudanças climáticas e ambientais e atentar para a culpabilização dos grandes
sistemas que orientam a sociedade ocidental (como agricultura em larga esca-
la e economia predatória).
86 ETNOBIOLOGIA E GESTÃO DE RECURSOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE: CONCEITOS, PRÁTICAS E DESAFIOS
consideram a luta dos povos, além de ineficientes, promovem
conflitos ambientais desnecessários.
A perspectiva política é destacada na etnobiologia desde
a sua chamada “quarta fase” – a etnobiologia indígena (Hunn,
2007). Nessa fase, protagonizada principalmente pelas ações
de Darrell Posey, a etnobiologia objetivou de certa forma com-
pensar o seu passado histórico colonial (representado nas pri-
meiras fases), enfatizando os princípios éticos da pesquisa et-
nobiológica e a defesa dos direitos dos povos indígenas. Nesse
contexto da quarta fase, foi elaborada a Declaração de Belém
(ISE, 1988), importante documento em favor dos direitos dos
povos tradicionais, que serve de base (ou deveria servir) para
todas as pesquisas etnobiológicas.
Assim, a etnobiologia política, também conhecida como
“etnobiologia da ação” (Caron-Beaudoin & Armstrong, 2019) ou
“etnobiologia engajada” (Tomchinsky et al., 2019), não é uma
área completamente nova das etnociências, mas claramente
tem ganhado destaque nos últimos anos (Albuquerque et al.,
2024). A urgência em retomar esse tema pôde ser evidencia-
da quando, na ocasião dos 30 anos da Declaração de Belém, a
Sociedade Internacional de Etnobiologia (ISE) constatou que
a maioria dos objetivos de tal carta não havia sido alcançada
e que pesquisadores não conseguiram beneficiar suficiente-
mente as populações com as quais trabalharam durante to-
dos esses anos. Esse apelo deu origem então à Declaração de
Belém +30 (ISE, 2018), reforçando o compromisso da ciência
em apoiar de alguma maneira a soberania das comunidades
locais e dos povos tradicionais sobre a terra, as águas e o pa-
trimônio biocultural.
Se, por um lado, grande parte dos etnobiólogos e etnobi-
ólogas tenha falhado em auxiliar na manutenção dos direitos
e do conhecimento das comunidades com as quais realizam
suas pesquisas, por outro lado, os processos de invisibilização
A ETNOBIOLOGIA POLÍTICA NO BRASIL E O EMPODERAMENTO DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES LOCAIS 87
e supressão dos modos de vida dos povos tradicionais não re-
trocederam ao longo do tempo. Ao contrário, ficaram cada vez
mais latentes, mostrando a necessidade de uma reestrutura-
ção epistemológica, metodológica e conceitual da pesquisa
etnobiológica, de forma a agregar mais explicitamente as de-
mandas locais e aumentar a participação ativa dos pesquisa-
dores e pesquisadoras nas lutas pelos direitos das comunida-
des locais e dos povos tradicionais. É nesse contexto que surge
a etnobiologia política, defendendo que a etnobiologia deve se
posicionar politicamente ante o fazer científico, descartando,
assim, o princípio de a ciência ser completamente neutra, uma
vez que é construída por atores de diferentes identidades e
classes sociais.
De fato, o conhecimento científico da etnobiologia pode de-
sempenhar um papel-chave na negociação, resolução de con-
flitos e formulação de instrumentos jurídicos e políticas pú-
blicas (Albuquerque et al., 2024). Atualmente, existem diversos
desses instrumentos, muitas vezes não conhecidos pelas po-
pulações onde os trabalhos etnobiológicos são desenvolvidos.
No Brasil, por exemplo, a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto
n.º 6040/2007), a Lei de Acesso e Repartição de Benefícios
(Lei n.º 13.123/2015) e a própria Constituição Federal fornecem
suporte legal a parte do que propõe a etnobiologia política. A
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção da
Diversidade Biológica também cumprem esse papel em nível
internacional.
Etnobiólogos e etnobiólogas podem atuar como tradutores
dos documentos legais – por vezes elaborados em uma lingua-
gem inacessível – que afetam tanto positiva quanto negativa-
mente os povos tradicionais. Podem auxiliar, ainda, na cons-
trução de documentos pelas próprias comunidades, a exemplo
88 ETNOBIOLOGIA E GESTÃO DE RECURSOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE: CONCEITOS, PRÁTICAS E DESAFIOS
de Protocolos Comunitários Bioculturais (BCP). Na América
Latina, tais protocolos mostraram servir como importantes
instrumentos para a garantia da segurança jurídica necessária
para preservar as diversas e múltiplas expressões dos conheci-
mentos locais e tradicionais ligados à biodiversidade (Andrade,
2022).
Neste capítulo, apresentamos experiências de povos tra-
dicionais e comunidades locais na busca pela conservação
de sua identidade e seus direitos, além de estudos de caso no
Brasil e na América Latina sobre como a etnobiologia política
pode promover um maior diálogo e contribuir para a soberania
e emancipação desses povos. Discutimos também os maiores
desafios e as perspectivas da etnobiologia política para a con-
servação da natureza e o desenvolvimento sustentável.
Iniciativas das comunidades locais na gestão dos
territórios e dos recursos da sociobiodiversidade
Dado o avanço progressivo das ameaças multifacetadas aos
territórios e às práticas tradicionais, algumas populações e
comunidades locais têm desenvolvido estratégias para a pro-
teção e gestão dos recursos da sociobiodiversidade, de forma
autônoma. A seguir, apresentamos algumas dessas estratégias.
Comunidades ribeirinhas da Ilha do Combu, Pará
Um exemplo notável da iniciativa local pode ser observa-
do nas comunidades ribeirinhas da Ilha do Combu, situada na
Amazônia brasileira. Essa pequena ilha, localizada às margens
de Belém, no Pará, abriga aproximadamente 1.500 pessoas que,
por meio de esforços comunitários, estabeleceram um eficien-
te sistema de autogestão dos recursos (Cirilo, 2013).
A ETNOBIOLOGIA POLÍTICA NO BRASIL E O EMPODERAMENTO DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES LOCAIS 89
Historicamente, as comunidades ribeirinhas da Ilha do
Combu têm obtido seu sustento da pesca e da extração de
produtos florestais (Dergan, 2006). No entanto, a instauração
de uma Área de Proteção Ambiental (APA Combu) na região e
os conflitos socioambientais relacionados ao uso do territó-
rio resultaram na migração de parte da população para Belém,
em busca de novas oportunidades (Ribeiro, 2010; Rodrigues,
2006). Apesar dessas adversidades, cerca de 65% dos morado-
res da ilha permanecem envolvidos no manejo e extrativismo
do açaizeiro (Euterpe oleracea Mart.), o qual constitui a princi-
pal fonte de renda das famílias locais (Cirilo, 2013).
O manejo dos açaizais na Ilha do Combu é realizado por
meio de sistemas agroflorestais extensivos, caracterizados
pela utilização combinada de diferentes faixas de terra. Tais
sistemas incluem quintais produtivos, onde são cultivadas di-
versas espécies frutíferas, florestas manejadas e não maneja-
das. Embora esse tipo de manejo apresente resultados mais
tardios, aumenta substancialmente a produtividade do açai-
zeiro e de outras espécies de importância econômica. Além
disso, contribui para a regeneração das florestas, sendo con-
siderado um modelo de sustentabilidade para as florestas de
várzea na Amazônia (Cirilo, 2013).
Mais recentemente, outro produto da floresta tem con-
tribuído de maneira incipiente na economia local: o cacau
(Theobroma cacao L.) (Ferreira, 2023). A fabricação dos cho-
colates produzidos a partir dos frutos do cacau, além de gerar
emprego para a população da Ilha do Combu, tem favorecido o
aumento do turismo de base local, aumentando e diversifican-
do as formas de obtenção de renda (Pereira Júnior et al., 2023)
Parte do sucesso na gestão dos recursos da sociobiodiver-
sidade da Ilha do Combu pode ser atribuída à maneira de or-
ganização social da comunidade, em que as mulheres desem-
penham um papel central. Elas são as principais lideranças e
90 ETNOBIOLOGIA E GESTÃO DE RECURSOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE: CONCEITOS, PRÁTICAS E DESAFIOS
possuem voz ativa em toda a cadeia produtiva do açaí, bem
como na gestão da produção do cacau e de outros produtos
florestais (Pereira Júnior et al., 2023; Rodrigues, 2006). Essa di-
nâmica de liderança feminina não só fortalece a coesão social,
mas também promove a equidade de gênero, crucial para o de-
senvolvimento sustentável e inclusivo da comunidade.
As parteiras tradicionais do estado do Maranhão
A Federação das Parteiras Tradicionais do estado do
Maranhão iniciou sua trajetória com a Associação de Parteiras
Leigas em 1981, um pequeno grupo comunitário de mulheres
que se reuniram em torno de pautas de cunho social e político,
na capital do estado, São Luís. Reconhecidas como parteiras
tradicionais por suas comunidades, as parteiras maranhenses
são mulheres de fé e coragem que possuem um “dom” – ou vo-
cação – para o ofício tradicional, zelando pela saúde coletiva
de meninas e mulheres. Com a incorporação de associações de
parteiras de cidades do interior do estado na grande maioria de
comunidades rurais e com a alfabetização autodidata das par-
teiras, a Associação de Parteiras Leigas deu origem à Federação
das Parteiras Tradicionais do Maranhão, fundada em 1999.
Atualmente, a Federação é composta por 25 associações de
parteiras rurais, indígenas e quilombolas do interior do estado
maranhense, Nordeste do Brasil, além das parteiras atuantes
nas regiões periféricas da capital do estado (Ribeiro, 2024).
O engajamento político-social da Federação das Parteiras
Tradicionais do Maranhão culminou em conquista de melho-
res condições para a prática do ofício tradicional por meio da
parceria com a Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão,
com o oferecimento de curso de capacitação e, posteriormen-
te, a consolidação de contratação remunerada de parteiras
para atuação em rede assistencial ao hospital comunitário que
atende a região de trabalho das parteiras na capital. Entretanto,
A ETNOBIOLOGIA POLÍTICA NO BRASIL E O EMPODERAMENTO DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES LOCAIS 91
com a troca do mandado da gestão governamental, houve um
esvaziamento das políticas públicas de saúde e a suspensão de
contratos com as parteiras.
A atuação tradicional das parteiras maranhenses tem se
dinamizado em processos adaptativos às práticas biomédicas
desde o contato com as instituições médicas ocidentais, o que
ressoa na formulação de estratégias para a conquista de di-
reitos e de condições de trabalho digno. O retorno ao acesso
ao hospital comunitário de rede pública para realizar atendi-
mentos contemplados pela estrutura oferecida, bem como a
disponibilização gratuita de equipamentos necessários para
assistência domiciliar e a remuneração salarial, constitui uma
reivindicação concernente aos fatores adaptativos apontados
pelas parteiras como ideais para um pleno encaminhamento do
ofício tradicional, uma vez que, anteriormente ao contato com a
medicina ocidental, os atendimentos prestados pelas parteiras
tradicionais eram não remunerados, exclusivamente domicilia-
res e realizados com equipamentos não convencionais aos pa-
drões hospitalares, estando ausentes as instâncias de vigilância
médica e de validação do sistema médico-local (Ribeiro, 2024).
Nesse sentido, ainda que em 2022 o ofício da parteira tenha
sido reconhecido institucionalmente com a promulgação de
legislação estadual, a Federação das Parteiras Tradicionais do
Maranhão promove o debate coletivo para a construção de um
documento protocolar, o Protocolo Comunitário Biocultural
das Parteiras Tradicionais do Estado do Maranhão. Esse docu-
mento deve atuar como instrumento político para o desenvol-
vimento de estratégias de proteção da identidade tradicional
das parteiras, de seus conhecimentos e de suas práticas an-
cestrais associadas à saúde coletiva e à sociobiodiversidade,
bem como para o alcance de condições dignas de exercer seu
ofício, visando à promoção efetiva da saúde popular e da jus-
tiça social.
92 ETNOBIOLOGIA E GESTÃO DE RECURSOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE: CONCEITOS, PRÁTICAS E DESAFIOS
Narrativas de sucesso em etnobiologia
política no Brasil e na América Latina
A literatura etnobiológica tem detalhado avanços conside-
ráveis em etnobiologia política, com exemplos exitosos no Brasil
e em outros países da América Latina. No Norte do Brasil, uma
parceria entre pesquisadores e pesquisadoras e comunidades
locais favoreceu a conservação de uma das espécies simbólicas
da região amazônica, gerando renda para as famílias ribeiri-
nhas e diminuindo a insegurança alimentar: o manejo partici-
pativo do pirarucu (Arapaima gigas Schinz). Devido à sua gran-
de importância econômica, o pirarucu sofreu com os efeitos da
sobrepesca, o que ocasionou a redução das suas populações
naturais e, consequentemente, a diminuição da oferta do peixe
como alimento (Arantes et al., 2010).
Devido a essa problemática, o Instituto Mamirauá, uma
associação de cunho social e científico comprometida com o
manejo de recursos naturais e o desenvolvimento social, ado-
tou uma abordagem integrando pesquisa e extensão, na qual
pescadores foram treinados para realizar o acompanhamen-
to das populações do pirarucu, por meio da observação e da
contagem dos indivíduos. Tais informações, junto à coleta de
dados ecológicos, possibilitaram identificar padrões de mo-
vimentos dos peixes e, a partir disso, elaborar estratégias de
conservação que protegem as populações da pesca comercial
predatória, levando a uma recuperação do estoque populacio-
nal, favorecendo a conservação da espécie de forma sustentá-
vel e fazendo das populações locais os principais atores sociais
na criação de soluções conservacionistas (Campos‐Silva et al.,
2019; Freitas et al., 2020).
Outro exemplo exitoso do diálogo entre pesquisa e povos
tradicionais no desenvolvimento de estratégias para lidar com
problemas socioambientais é o das quebradeiras de coco-ba-
baçu (Attalea speciosa Mart.), nos estados do Pará, Maranhão,
A ETNOBIOLOGIA POLÍTICA NO BRASIL E O EMPODERAMENTO DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES LOCAIS 93
Piauí e Tocantins. As mulheres que colhem e quebram os fru-
tos das palmeiras de babaçu têm uma trajetória marcada por
lutas territoriais e pela resistência em manter suas práticas
tradicionais (Oliveira et al., 2022). A extração e quebra do co-
co-babaçu têm sido fonte de renda para diversas famílias ao
longo de décadas. Contudo, os territórios utilizados para ex-
tração do coco-babaçu tornaram-se alvo de pecuaristas que
desmataram os babaçuais em prol da criação de gado. O des-
matamento gerou migração forçada das quebradeiras, despe-
jos ilegais e destruição da biodiversidade, levando a grandes
tensões entre as comunidades locais e as organizações gover-
namentais (Oliveira et al., 2022).
Um estudo da etnobiologia realizado no município de Lago
do Junco, Maranhão, onde existe um grande movimento de or-
ganização comunitária liderado por mulheres, detalha a mo-
bilização das quebradeiras pelo acesso às palmeiras, por seus
direitos e por políticas públicas que visassem à proteção de
seus conhecimentos e suas práticas tradicionais (Oliveira et al.,
2022). A mobilização comunitária influenciou diretamente mu-
danças políticas e promoveu a utilização do babaçu como um
negócio local viável que propiciou parcerias comerciais com
empresas multinacionais, como The Body Shop International
(Oliveira et al., 2022), sendo essencial não só para garantia dos
direitos ao território, como também para manutenção do co-
nhecimento ecológico tradicional, subsistência das quebradei-
ras, conservação da biodiversidade e preservação da identida-
de cultural.
Outros países da América Latina também possuem exem-
plos bem-sucedidos. Em Cusco, no Peru, o Parque de la Papa
representa uma área de proteção ambiental que abrange ter-
ras dos povos indígenas Quechua, divididos nas comunidades
Amaru, Chawaytire, Pampallaqta, Paru Paru e Sacaca. Essa re-
gião é reconhecida como o berço de uma grande diversidade
94 ETNOBIOLOGIA E GESTÃO DE RECURSOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE: CONCEITOS, PRÁTICAS E DESAFIOS
de batatas (Solanum spp), constituindo, por isso, um reserva-
tório genético, e apresenta diversas culturas de plantas medi-
cinais nativas da região andina (Argumedo, 2012). Nessa região,
as populações realizaram assembleias locais e escolheram 14
pesquisadores pertencentes às comunidades para auxiliar no
desenvolvimento do Protocolo Comunitário Biocultural (PCB)
do Parque de la Papa (Argumedo, 2012).
No desenvolvimento do protocolo, foi utilizada uma meto-
dologia participativa, de maneira colaborativa com as comuni-
dades, no intuito de construir um documento que simbolizasse
sua resistência (Argumedo, 2012). Assim, foram identificadas
as leis consuetudinárias quechuas que estavam atreladas ao
conhecimento ecológico local. O PCB do Parque de la Papa
também buscou estabelecer mecanismos para resolução de
conflitos e partilha de informações e benefícios, integrando
instituições comunitárias nesses processos (Argumedo, 2012).
Esses mecanismos garantem o acesso das mulheres e de ou-
tros grupos sociais desfavorecidos à segurança alimentar e
nutricional e promovem a troca de conhecimentos locais, in-
cluindo a troca de sementes entre os habitantes.
Outro caso interessante do papel do estudo etnobiológico
no auxílio ao alcance dos direitos e à manutenção das tradi-
ções dos povos se refere ao uso de plantas medicinais, prática
que, embora constitua o tema mais trabalhado na etnobiologia,
não é reconhecida por lei. Pelo contrário, de acordo com o ar-
tigo 273 do Código Penal Brasileiro, disponibilizar produtos te-
rapêuticos sem registro no Ministério da Saúde é considerado
crime (Dias & Laureano, 2009). Essa criminalização causa um
impacto negativo na dinâmica e transmissão dos conhecimen-
tos em relação à medicina tradicional.
As raizeiras do Cerrado, por exemplo, são povos tradicio-
nais que usam e comercializam medicamentos feitos a partir da
flora desse bioma. Elas se organizam em encontros regionais e
A ETNOBIOLOGIA POLÍTICA NO BRASIL E O EMPODERAMENTO DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES LOCAIS 95
nacionais voltados a debater critérios de segurança e eficácia
dos remédios caseiros por elas produzidos (Dias & Laureano,
2009), bem como a fortalecer a identidade social do grupo e
a estabelecer metas para a conservação da biodiversidade do
Cerrado (Dias & Laureano, 2009). A partir desses encontros,
foi produzido o PCB das raizeiras do Cerrado, em uma ação
entre pesquisadoras e raizeiras, com o intuito de salvaguardar
os seus direitos. Esse PCB objetiva “ser um instrumento polí-
tico para a conquista de uma legislação que garanta o direito
consuetudinário de quem faz o uso tradicional e sustentável da
biodiversidade brasileira para a saúde”.
Desafios e perspectivas da etnobiologia
política para a conservação da natureza
e o desenvolvimento sustentável
É consenso nas ciências da conservação que não existe
preservação da biodiversidade sem a participação de comuni-
dades locais e povos tradicionais. Considerar sua participação
é considerar igualmente os efeitos do colonialismo, o racismo
interinstitucional, os traumas intergeracionais e os conflitos
ambientais e políticos que esses povos enfrentaram e ainda
enfrentam (Hanazaki, 2024). Portanto, os sistemas socioeco-
lógicos também possuem uma faceta política, e a resiliência
dessa intrincada rede que envolve seres humanos e a natureza
depende não só da riqueza das espécies e da soberania alimen-
tar e médica das populações envolvidas – principais focos dos
estudos etnobiológicos –, mas também da sua soberania social,
econômica e política.
Estamos entrando em uma fase decolonial da etnobiolo-
gia (McAlvay et al., 2021), e a etnobiologia política tem um pa-
pel fundamental no processo de reapropriação da identidade
dos povos tradicionais ante a um histórico de colaborações
96 ETNOBIOLOGIA E GESTÃO DE RECURSOS DA SOCIOBIODIVERSIDADE: CONCEITOS, PRÁTICAS E DESAFIOS
antiéticas, desrespeito, invisibilização e violação de direitos.
Por sorte, tem crescido o número de estudos etnobiológicos
que integram as demandas das próprias comunidades aos seus
objetivos e às suas perguntas de pesquisa. Como os exemplos
que trouxemos aqui, diversos PCBs têm sido criados a partir do
diálogo entre pesquisadoras e pesquisadores com os povos tra-
dicionais. Esses protocolos são importantes instrumentos de
resistência à biopirataria e à violação dos direitos territoriais
(Almada & Sanchez, 2024), contribuindo para a manutenção de
práticas locais que levam ao desenvolvimento sustentável.
Apesar de tais esforços, a instabilidade política enfrentada
pelo Sul Global ameaça constantemente os direitos das po-
pulações mais pobres, sendo um verdadeiro desafio construir
barreiras concretas que impeçam o avanço do mecanismo ne-
oliberal que leva a práticas de exploração capitalistas insusten-
táveis. Portanto, a etnobiologia política, para que contribua efe-
tivamente ao desenvolvimento sustentável e à conservação da
biodiversidade e do conhecimento a ela atrelado, deve se firmar
não só como um campo de pesquisa, mas também como um
campo de compromisso ético e político com as lutas das comu-
nidades e dos povos tradicionais. É necessário, então, estreitar
os laços entre pesquisadoras e pesquisadores e comunidades,
traçando planos e estratégias para garantir a supremacia dessas
comunidades sobre o uso dos recursos naturais e atender a suas
principais demandas. Nesse contexto, tais populações precisam
deixar de ser vistas como objetos de estudo e passar a ser con-
sideradas sujeitos da pesquisa (Almada & Sanchez, 2024).
Dessa forma, é responsabilidade do campo da etnobiologia
política promover o desenvolvimento de ferramentas teóricas,
conceituais e práticas que apoiem a formulação de estratégias
emancipatórias elaboradas por comunidades locais e povos
tradicionais, servindo como meio para impulsionar a decolo-
nização e o fortalecimento do conhecimento ecológico local.
A ETNOBIOLOGIA POLÍTICA NO BRASIL E O EMPODERAMENTO DE POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES LOCAIS 97
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