Introdução à
bioquímica
Ana Daniela Coutinho Vieira
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
>> Indicar os analitos que podem ser determinados no laboratório de análises
clínicas.
>> Reconhecer a importância do perfil bioquímico e sua interpretação para o
diagnóstico e tratamento médico.
>> Identificar um perfil bioquímico alterado e as informações sobre a saúde
do paciente.
Introdução
A bioquímica consiste na interação entre as moléculas orgânicas e inorgânicas e os
processos metabólicos e moleculares aos quais elas são integradas dentro de um
sistema. Em um organismo vivo, como no corpo humano, essas moléculas são sinte-
tizadas e degradadas de forma contínua, gerando energia e metabólitos sem os quais
a manutenção fisiológica do corpo seria impossível (NELSON; COX, 2014). Por sua vez, a
bioquímica clínica é a integração desses princípios em um âmbito médico-laboratorial.
Neste capítulo, você irá conhecer um dos principais setores de um laboratório
de análises clínicas — o de bioquímica —, responsável por um grande volume de
exames diários. A partir de amostras biológicas variadas, as análises realizadas
nesse setor geram resultados capazes de diagnosticar doenças, acompanhar
evoluções clínicas e avaliar a fisiologia corporal de uma forma ampla e diversa. A
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partir dessas informações, você irá então conhecer quais são as amostras utilizadas
para tais análises, além dos principais analitos avaliados. Com isso, será também
capaz de compreender a importância dos perfis bioquímicos e das informações
passadas por meio deles para o diagnóstico e o tratamento de diversas condições,
colaborando diretamente para um melhor desfecho clínico dos pacientes.
Bioquímica no contexto laboratorial
Os exames bioquímicos compõem uma porção consideravelmente elevada
dentro das análises realizadas em um laboratório clínico. Eles são requisi-
tados em situações variadas, por vezes mais específicas, como na avaliação
de glicemia em suspeitas de diabetes, e por vezes de forma complementar,
como na monitorização de função hepática em pacientes acometidos por
hepatites virais (MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019). Por meio dos achados
bioquímicos, é possível determinar o estado funcional dos mais diversos
órgãos e sistemas corporais, realizar a triagem e o acompanhamento de
distúrbios metabólicos, avaliar a resposta a tratamentos, entre outras tantas
possibilidades que fazem com que o setor de bioquímica seja essencial na
composição de um laboratório, seja este de pequeno ou grande porte, com
atendimento ambulatorial ou hospitalar.
Alguns desses exames são considerados rotineiros, pois fazem parte da
generalidade dos pedidos médicos e testam analitos envolvidos na avaliação
de doenças metabólicas bastante comuns na Medicina, e em condições de
monitoramento terapêutico, ou ainda relacionados à avaliação da condição
fisiológica dos pacientes. Tais exames costumam compor os perfis bioquímicos
mais frequentemente solicitados e, portanto, fazem parte da listagem de
procedimentos de laboratórios de todos os portes. O exemplo mais habitual
desse tipo de exame é a dosagem dos níveis de glicose, que é frequentemente
utilizada no acompanhamento dos pacientes diabéticos. Da mesma forma, as
dislipidemias, fundamentais na avaliação do risco cardiovascular, também
fazem parte da rotina diária de um laboratório de bioquímica, assim como a
creatinina e a ureia, continuamente utilizadas na avaliação da função renal,
e as enzimas hepáticas que são usadas na avaliação da qualidade funcional
do fígado (BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019). Do
mesmo modo, os eletrólitos, como sódio, potássio, cloreto e bicarbonato,
indispensáveis para a manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico e da pressão
osmótica, também são avaliados a partir de parâmetros bioquímicos. De forma
ainda mais completa, a gasometria arterial fornece uma avaliação geral do
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estado metabólico do paciente ao utilizar dados de pressão de oxigênio e
dióxido de carbono, pH sanguíneo, entre outros parâmetros.
Esses exames frequentemente solicitados compõem os principais perfis
bioquímicos avaliados em laboratório. Os perfis são assim chamados por
formarem uma série de exames que, ao serem analisados em conjunto, for-
necem uma ideia mais ampla e completa da função de um determinado órgão
ou sistema. Confira a seguir alguns dos principais perfis (BARCELOS; AQUINO,
2018; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
Perfil lipídico: composto principalmente pelas análises dos níveis sé-
ricos de colesterol total, colesterol HDL, colesterol não HDL, colesterol
LDL e triglicerídeos.
Perfil cardíaco: avaliado pela dosagem dos níveis séricos de troponinas
e de forma secundária pelos níveis de creatinoquinase fração MB e
mioglobina.
Perfil renal: níveis séricos de creatinina e ureia e taxa de filtração
glomerular e depuração da creatinina e da proteinúria.
Perfil proteico: determinado, principalmente, pela avaliação da con-
centração de proteínas séricas totais e pela determinação da relação
albumina/globulina, podendo ser avaliadas proteínas de forma indi-
vidualizada, como as globulinas.
Perfil hepático: avaliado essencialmente pelos níveis séricos das enzi-
mas alanina aminotransferase, aspartato aminotransferase, fosfatase
alcalina e γ-glutamiltransferase e dos níveis séricos de bilirrubinas e
proteínas totais.
Os exames considerados especializados, por outro lado, envolvem analitos
menos solicitados, pois são considerados de diagnóstico personalizado e, em
geral, envolvem tecnologias diferenciadas. É o caso das dosagens hormonais
(utilizadas para avaliações endócrinas) e das dosagens de vitaminas, de
metabólicos intermediários ou de proteínas mais específicas. Habitualmente,
essas análises são realizadas em laboratórios de maior porte ou em centros
de referência (terceirizados). Além da categorização em relação à frequência
de solicitação, ainda deve ser considerada a necessidade de urgência da
liberação de um resultado de exame, visto que a avaliação de determinados
analitos é decisiva na tomada de decisões em relação a procedimentos e à
conduta terapêutica e médica. Nesses casos, o laboratório deve dispor de
estrutura e equipe compatíveis com as demandas recebidas, especialmente
em se tratando do nível hospitalar (MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
16 Introdução à bioquímica
Amostras biológicas utilizadas em bioquímica
Para realizar essa diversidade de exames, as principais amostras utilizadas nas
análises bioquímicas são sangue e urina, entretanto, também é possível analisar
padrões bioquímicos em outras amostras, como saliva, líquido cefalorraquidiano
e outros líquidos corporais (MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019). As análises de
sangue, particularmente, merecem uma atenção especial, pois, além de serem as
mais frequentes no setor de bioquímica, também apresentam uma variação em
relação à sua forma de utilização. Mais frequentemente os testes são realizados
utilizando amostras de plasma ou soro, mas sangue total com anticoagulantes
também pode ser empregado em alguns casos. Tanto o plasma quanto o soro
são denominados como porção líquida do sangue, ou seja, sem as células após
um processo de centrifugação. A diferença essencial entre eles é que o soro
é a porção líquida gerada a partir de um sangue colhido sem anticoagulantes
e que, portanto, consumiu os fatores de coagulação. Já o plasma é separado
a partir de uma amostra colhida com anticoagulante e que, por isso, mantém
intactos os fatores de coagulação e o fibrinogênio, o que possibilita, inclusive,
a sua dosagem (FLEURY, 2019; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
O Manual de coleta em laboratório clínico, elaborado pelo Programa
Nacional de Controle de Qualidade (PNCQ), abrange detalhadamente
as particularidades referentes à coleta, ao transporte e ao acondicionamento
de amostras biológicas.
O tipo de amostra de urina usualmente utilizada em avaliações bioquí-
micas é a urina de 24h. Essa preferência ocorre pelo fato de que a excreção
de substâncias na urina varia bastante durante o decorrer do dia. Por essa
razão, esse tipo de amostra apresenta uma melhor representatividade em
relação às amostras isoladas, apesar de essa última ser aceita em alguns casos
específicos (RECOMENDAÇÕES..., 2017; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
Processamento laboratorial e erros
em potencial
Para que o resultado de um exame bioquímico seja representativo da real
condição do paciente, diversos critérios devem ser levados em consideração
durante a execução do exame, tais como a metodologia a ser utilizada, o tipo
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de amostra clínica e os interferentes in vitro e in vivo. Uma análise apurada
desses critérios pode minimizar substancialmente a ocorrência de erros labo-
ratoriais e, por consequência, elevar a confiabilidade do exame em questão.
Os erros laboratoriais podem ocorrer em qualquer fase da realização de um
exame, seja nas fases pré-analítica, analítica ou pós-analítica. A fase pré-analítica
compreende todas as atividades desde a requisição do exame, conforme pedido
médico, até o início do procedimento analítico em si. Essa fase inclui o preparo do
paciente, a coleta, o transporte e o acondicionamento de amostras. Nessa etapa,
por exemplo, o jejum é um dos principais interferentes relacionados ao preparo
do paciente, tanto pela ocorrência de alterações nos níveis séricos de alguns me-
tabólitos, quanto pela ocorrência de lipemia (excesso de lipídios no sangue), que
prejudica diversas dosagens séricas. Para a maioria dos exames, recomenda-se
um jejum de 8h, sendo que esse tempo pode ser reduzido para 4h na maioria dos
casos. Deve-se levar em consideração que o jejum excessivamente prolongado
também pode ser prejudicial (BARCELOS; AQUINO, 2018; SOARES et al., 2012).
Em dezembro de 2016, foi publicado o Consenso Brasileiro para a
Normatização da Determinação Laboratorial do Perfil Lipídico, que
consiste em uma revisão da necessidade de jejum para a realização dos exames de
perfil lipídico: colesterol total, colesterol HDL, colesterol LDL, colesterol não HDL
e triglicerídeos. Esse documento dispensa a obrigatoriedade do jejum de 12h para
esses exames, desde que no laudo seja relatado o estado de jejum (quantas horas
decorrentes desde a última alimentação), e leva em consideração a possibilidade
de flexibilização do jejum em decorrência de solicitação médica específica.
Para a adequação a essas situações, o Consenso recomenda a interpretação dos
valores de referência e de alvo terapêutico levando em consideração o motivo do
exame, o estado metabólico do paciente e a estratificação de risco cardiovascular.
A utilização de medicamentos é um importante interferente, visto que
pode causar alterações in vivo e in vitro. Quando um medicamento, ou seus
metabólitos, gera uma alteração na fisiologia e no metabolismo do paciente,
essa interferência é considerada in vivo; quando o uso de medicamentos
causa uma alteração durante a realização do exame, seja por propriedades
físicas ou químicas de interação com a técnica, considera-se que esta é uma
interferência in vitro (BARCELOS; AQUINO, 2018).
Ainda na etapa de pré-análise, um ponto crítico é a coleta de material
biológico. Um dos principais interferentes em dosagens laboratoriais é o
desenvolvimento de hemólise da amostra, ou seja, destruição das hemácias
em uma amostra de sangue. Essa intercorrência geralmente acontece devido
18 Introdução à bioquímica
a coletas demoradas ou difíceis e à manipulação incorreta de amostras
(BARCELOS; AQUINO, 2018; FLEURY, 2019). Por esses e outros motivos, a fase
pré-analítica é considerada crítica, visto que diversos fatores podem alterar
a qualidade da amostra e, inclusive, destruir componentes, inviabilizando a
execução do exame. É nessa etapa, portanto, que se concentra a maioria dos
erros laboratoriais (SOARES et al., 2012; BARCELOS; AQUINO, 2018).
A fase analítica compreende a etapa instrumental da realização de um exame:
o processamento realmente dito. É nesse momento que ocorre a centrifugação
e o preparo de amostras, a execução do exame (de forma automatizada ou
semiautomatizada) e a leitura dos resultados. Essa etapa se relaciona com o
desempenho do analista clínico e dos equipamentos e com a qualidade dos
reagentes utilizados. A partir desses processos, podem ocorrer tanto erros
sistemáticos, considerados previsíveis, quanto erros aleatórios e imprevisíveis
(Quadro 1). Considera-se que os erros sistemáticos estão mais relacionados ao
operador (analista), aos instrumentos e às suas calibrações, de modo a causar
resultados sem exatidão. Já os erros aleatórios são associados à variabilidade
analítica e geram resultados imprecisos. Para evitar, ou ao menos minimizar a
ocorrência desses erros, o laboratório de análises clínicas deve contar com a uti-
lização de sistemas de verificação e de controle interno e externo da qualidade.
Quadro 1. Erros laboratoriais na fase analítica
Erros sistemáticos Erros aleatórios
Origem Previsível Imprevisível
Fontes Instrumento, calibração, operador Variabilidade analítica
Quantificáveis Sim Não
Resultado Inexato (não há concordância Impreciso (não há
entre o valor real e o valor obtido reprodutibilidade entre os
na análise) resultados)
Exemplos Preparo incorreto de reagentes, Bolhas de ar na tubulação,
diluição inadequada de microcoágulos na
reagentes, mudança de lotes de amostra ou no pipetador,
reagentes ou calibradores temperatura instável do
equipamento
Fonte: Adaptado de Xavier, Dora e Barros (2016) e Barcelos e Aquino (2018).
Introdução à bioquímica 19
Embora haja consenso quanto à necessidade de minimização de erros
em todas as etapas laboratoriais, é impossível evitar completamente a
sua ocorrência, dessa forma, torna-se necessário saber identificar correta
e rapidamente a possibilidade de comprometimento da amostra bioló-
gica em decorrência de possíveis falhas no processo. Como abordado
anteriormente, o ponto crítico nesse seguimento é a fase pré-analítica,
sendo que as amostras bioquímicas são especialmente afetadas por erros
nas etapas de preparação do paciente e de coleta das amostras (MUPHY;
SRIVASTAVA; DEANS, 2019). Muitas vezes, o erro pré-analítico se inicia
muito antes da colheita da amostra, como acontece nos casos em que
há descumprimento das recomendações ao paciente. Tanto a diminuição
quanto o aumento do tempo de jejum, por exemplo, podem causar alte-
rações significativas nos exames. Além disso, hábitos não alimentares,
mas relacionados ao estresse, ao consumo de álcool e cigarro e à prática
de exercício físico podem alterar os resultados desses exames. Analitos
como a bilirrubina, a aldosterona, o glicerol, o ácido úrico, a ureia e os
triglicerídeos são particularmente afetados por tempos excessivos de
jejum. Já a glicose é afetada por situações diversas, como estresse, ciclo
circadiano, tabagismo e consumo de álcool (BARCELOS; AQUINO, 2018;
MUPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
A etapa de coleta de amostras é outro ponto de atenção crítico em relação
a erros laboratoriais. Uma coleta de amostra de sangue demorada ou de
difícil punção pode levar à destruição de hemácias (hemólise) e, conse-
quentemente, à liberação de potássio e outros constituintes intracelulares,
causando, por consequência, uma falsa elevação desses analitos. A demora
na punção após o garroteamento também pode gerar um extravazamento
de água do vaso sanguíneo para o espaço intersticial, com isso, eleva-se a
concentração de componentes sanguíneos, especialmente de proteínas. Por
outro lado, a utilização incorreta de anticoagulantes também pode gerar
inaptidão e rejeição de amostras, pois cada análise tem suas particulari-
dades e requer a utilização de tubos de coleta específicos. A utilização de
tubos contendo fluoreto de sódio, por exemplo, é fortemente recomendada
na avaliação de perfil glicêmico, pois o fluoreto inibe a via da glicólise, o
que impede o consumo da glicose na amostra. Algumas propriedades refe-
rentes aos principais anticoagulantes usados em bioquímica clínica estão
demonstradas no Quadro 2 (BARCELOS; AQUINO, 2018; MUPHY; SRIVASTAVA;
DEANS, 2019).
20 Introdução à bioquímica
Quadro 2. Principais tubos de coleta utilizados em bioquímica clínica
Cor da tampa
Tubos de coleta do tubo Uso indicado
Sem anticoagulante Vermelha Testes bioquímicos em
geral
Ativador de Amarela
coagulação e gel
separador
Heparina de sódio Verde Testes bioquímicos e
ou lítio enzimáticos
Fluoreto de sódio + Cinza Testes de avaliação do
EDTA metabolismo da glicose
Fonte: Adaptado de Fleury (2019).
Na fase analítica, há a confecção do laudo a partir da transcrição
dos resultados e da avaliação dos resultados pelo médico. Nessa etapa,
é de fundamental importância que os resultados sejam relatados de
forma nítida, completa e correta para que a interpretação seja efetiva e
resulte uma conduta clínica condizente com a situação do paciente. Para
minimizar erros, como transcrição incorreta de resultados, informações
mal expressas ou cálculos incorretos, a automatização dos equipa-
mentos com interfaceamento direto dos resultados para um sistema
de gerenciamento laboratorial se apresenta como uma excelente — e
acessível — alternativa, aliada a bons processos de controle de qualidade
(BARCELOS; AQUINO, 2018). Para a avaliação das informações geradas
pelos resultados laboratoriais, ao receber o laudo de um exame, o médico
assistente do paciente irá utilizar os critérios de intervalo ou os valores
de referência para a sua tomada de decisão frente ao caso (MUPHY;
SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
Introdução à bioquímica 21
Avaliação de resultados e métodos
diagnósticos em bioquímica
Os valores de referência são norteadores da interpretação de um exame
laboratorial. Teoricamente, a determinação desses parâmetros leva em
consideração a média dos valores de um analito encontrada em 95% de
indivíduos considerados saudáveis. A recomendação é que cada labora-
tório produza seus próprios valores de referência por meio de estudos na
população atendida, porém, esses estudos são onerosos, demorados e nem
sempre adequados, devido a isso, esses padrões podem ser obtidos a partir
da recomendação de sociedades especializadas, como a Sociedade Brasi-
leira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML) e a Sociedade
Brasileira de Análises Clínicas, além das recomendações do fabricante do
teste ou de bibliografias prévias, cujos resultados são obtidos em estudos
e pesquisas que visam à padronização desses valores (SOARES et al., 2012;
MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
É importante ter em mente que, por ser uma avaliação que leva em con-
sideração os resultados de 95% de uma população saudável, e não a sua
totalidade, é natural que se espere que os 5% restantes da população apre-
sentem resultados fora dos limites de referência, os quais estarão abaixo ou
acima desses valores preestabelecidos, mesmo que sejam considerados cida-
dãos saudáveis (Figura 1). Ou seja, uma pequena porcentagem de indivíduos
considerados saudáveis para um determinado parâmetro pode apresentar
valores que serão considerados fora dos padrões de referência, mesmo sem
apresentar qualquer distúrbio nesse quesito (SOARES et al., 2012; MURPHY;
SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
Além desse viés, também deve ser levado em consideração o fato de que
as definições de normal e anormal para um resultado laboratorial precisam
avaliar a condição fisiológica do paciente, haja vista que fatores como sexo e
idade geralmente causam diferenças significativas nos resultados esperados
para cada grupo. Da mesma forma, diferentes dietas, ocorrência de gravidez,
histórico médico, uso de medicamentos e até mesmo o ciclo biológico de
um indivíduo podem influenciar a resposta a um teste sem necessariamente
indicarem alguma patologia. Por essa razão, os valores de referência devem
ser considerados uma indicação de interpretação dos resultados e não um
guia restrito (Figura 1).
22 Introdução à bioquímica
Figura 1. Representação da definição dos valores de referência.
Fonte: Murphy, Srivastava e Deans (2019, p. 1026).
Por outro lado, os valores críticos são, sim, resultados que devem ser
avaliados de forma rígida e reportados de acordo com as recomendações.
Chamam-se valores críticos os resultados de exames laboratoriais que re-
presentam risco grave à saúde do paciente. Por isso, os laboratórios têm o
dever de comunicá-los imediatamente ao médico assistente do paciente.
Diversos exames bioquímicos têm valores críticos (BARCELOS; AQUINO, 2018):
ácido úrico > 13,0mg/dL;
amilase > 200UI/L;
bilirrubina total > 15,0mg/dL;
lactato > 45mg/dL.
Os valores aqui citados podem ser consultados em documentos ofi-
ciais, como na tabela publicada pelo PNCQ: Valores críticos de exames
laboratoriais que necessitam de imediata tomada de decisão, em atendimento
à RDC 302:2005 da Anvisa.
Além dos parâmetros utilizados para avaliar os resultados laboratoriais,
alguns importantes índices são empregados no julgamento da eficiência dos
métodos e testes escolhidos. Nesse sentido, a sensibilidade e a especificidade
Introdução à bioquímica 23
dos testes são peças-chave na escolha de uma metodologia a ser utilizada
(BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
Sensibilidade diagnóstica é como é designada a capacidade de um teste
obter um resultado positivo mediante a presença da doença (ou do marcador
da doença) no paciente, ou seja, trata-se de um resultado verdadeiro-positivo
(VP), ao passo que a especificidade diagnóstica é a capacidade de um teste
obter um resultado negativo na ausência da doença (ou do marcador da
doença) no paciente (verdadeiro-negativo [VN]). Dessa forma, a proporção
entre os VPs e os VNs, em relação ao total de testes, define a acurácia do
método (BARCELOS; AQUINO, 2018; SOARES et al., 2012).
Esses índices são importantes para a elaboração dos valores preditivos. O
valor preditivo positivo (VPP) é a probabilidade de o paciente ter a doença (ou
o marcador da doença) e apresentar o teste positivo. Esse índice é importante
na escolha de testes confirmatórios, ou seja, nos quais é necessário que os
pacientes doentes/positivos sejam corretamente identificados. Isso quer
dizer que os testes com alto VPP serão os testes com alta especificidade
(BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019). Já os testes
com alto valor preditivo negativo serão aqueles com alta probabilidade de o
paciente que não está com a doença (ou o marcador da doença) apresentar
o resultado negativo. Esse tipo de desempenho exige uma alta sensibilidade
e é bastante útil em testes de triagem, nos quais é mais importante que os
pacientes sadios/negativos sejam corretamente identificados (Quadro 3)
(BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY; SRIVASTAVA; DEANS, 2019).
Quadro 3. Avaliação de testes diagnósticos
Doente/Com marcador Sadio/Sem marcador
Teste positivo VP Falso-positivo (FP)
Teste negativo Falso-negativo (FN) VN
Sensibilidade = VP / VP + FN e Especificidade = VN / VN + FP
Fonte: Adaptado de Barcelos e Aquino (2018) e Murphy, Srivastava e Deans (2019).
Para que a escolha entre a sensibilidade e a especificidade seja mais
balanceada durante a elaboração de uma técnica analítica, utiliza-se uma
curva ROC (Figura 2). Essa curva consiste na demonstração gráfica da relação
entre a proporção de FPs e VPs para diferentes pontos de corte de um teste.
24 Introdução à bioquímica
Por meio dela, diferentes métodos podem ser comparados, o que facilita,
por consequência, a análise e a escolha de testes mais acurados (XAVIER;
DORA; BARROS, 2016).
Figura 2. Exemplificação da curva de ROC. O eixo das ordenadas apresenta a sensibilidade
(taxa de VPs) de um teste em diferentes pontos de corte. No eixo das abscissas, está repre-
sentada a taxa de FPs (100% - especificidade). Para a avaliação dos testes, mede-se a área
sob a curva, da curva ROC, que é representativa do poder de discriminação do teste, ou seja,
sua capacidade preditiva. Nesse exemplo, o exame A apresenta uma maior área sob a curva
e, portanto, é um melhor teste.
Fonte: Xavier, Dora e Barros (2016, p. 76).
Esses índices são de extrema importância na avaliação de um teste
diagnóstico, pois, quanto maior a sensibilidade, menor será a ocorrência
de FNs, e quanto maior a especificidade, menor será o índice de FPs. Em um
mundo ideal, um teste deveria ser considerado ótimo quando apresentasse
especificidade e sensibilidade de 100%, ou seja, uma acurácia perfeita,
apesar disso, esse perfil dificilmente é atingido devido a limitações próprias
Introdução à bioquímica 25
das técnicas (BARCELOS; AQUINO, 2018). Por essa razão, a associação de
diferentes marcadores em um perfil bioquímico se torna tão importante. Na
avaliação do perfil enzimático hepático, por exemplo, os níveis de alanina
aminotransferase e γ-glutamiltransferase não devem ser avaliados isola-
damente, visto que essas enzimas são consideradas bastante sensíveis,
mas inespecíficas na avaliação de dano hepático. Por isso, a integração de
uma variedade de marcadores fornece resultados mais fidedignos e seguros
(BARCELOS; AQUINO, 2018).
Por fim, deve-se estar atento ao fato de que a sensibilidade analítica é
um parâmetro diferente da sensibilidade diagnóstica. A analítica, também
conhecida como limiar de detecção, refere-se ao menor nível de um analito
que um determinado método consegue detectar com precisão e que também
deve ser considerado com ponderação durante a escolha de uma metodologia
(BARCELOS; AQUINO, 2018). Para esse fim, na bioquímica clínica, uma ampla
variedade de metodologias pode ser utilizada para a execução dos exames,
dependendo da necessidade e da capacidade de cada laboratório. Em geral,
as técnicas são divididas em fotométricas, potenciométricas, eletroforéticas,
cromatográficas, imunoensaios ou as que se baseiam em espectrofotometria
de massa. De certa forma, a maioria desses métodos expressa os valores
de forma quantitativa, em unidades numéricas, e consiste na utilização de
diferentes técnicas de medida das reações bioquímicas, ou seja, interações
entre substratos consumidos e produtos gerados.
Referências
BARCELOS, L. F.; AQUINO, J. L. (ed.). Tratado de análises clínicas. Rio de Janeiro: Atheneu,
2018.
FLEURY, M. K. Manual de coleta em laboratório clínico. 3. ed. [Rio de Janeiro]: Programa
Nacional de Controle de Qualidade, 2019.
MURPHY, M.; SRIVASTAVA, R.; DEANS, K. Bioquímica clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Gua-
nabara Koogan, 2019.
NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de bioquímica de Lehninger. 6. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2014.
RECOMENDAÇÕES da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial
(SBPC/ML): realização de exames em urina. Barueri: Manole, 2017.
SOARES, J. L. M. et al. (org.). Métodos diagnósticos. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012.
(Consulta Rápida).
XAVIER, R. M.; DORA, J. M.; BARROS, E. Laboratório na prática clínica. 3. ed. Porto Alegre:
Artmed, 2016. (Consulta Rápida).
26 Introdução à bioquímica
Leituras recomendadas
CONSENSO brasileiro para a normatização da determinação laboratorial do perfil
lipídico. [2016]. Disponível em: http://www.sbpc.org.br/upload/conteudo/consenso_je-
jum_dez2016_final.pdf. Acesso em: 26 ago. 2020.
PROGRAMA NACIONAL DE CONTROLE DE QUALIDADE. Valores críticos de exames la-
boratoriais que necessitam de imediata tomada de decisão, em atendimento à RDC
302:2005 da Anvisa. 2017. Disponível em: https://www.pncq.org.br/uploads/pdfs/2015/
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Aceso em: 26 ago. 2020.
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