Jacques Ranciére - A Imagem Pensativa
Jacques Ranciére - A Imagem Pensativa
23. Walter Benjamin, L'OEuvre d'art à l'époque de sa reproductibilité technique, trad. fr.
Rainer Rochlitz, in Oeuvres, Folio/Gallimard, 2000, t. 3, p. 82.
104
Rineke Dijkstra, Kolobrzeg,
Poland, July 26,1992.
Cortesia da artista e da
Marian Goodman Gallery,
Nova York/Paris.
* Trad. bras., Júlio Castanon Guimarães, Nova Fronteira, 2011. [N. da T.]
106
Lewis Hine, Crianças
com retardo mental
numa instituição,
New Jersey, 1924.
107
f f —* - j^ '
108
associa a foto à imago latina, à efígie que garantia a presença
do morto, a presença do ancestral entre os vivos. Reaviva as
sim uma antiquíssima polêmica sobre a imagem. No século
I de nossa era em Roma, Plínio, o Velho, irritava-se com os
colecionadores que enchiam suas galerias de estátuas que
não sabiam o que representavam, estátuas que estava ali em
virtude de sua arte, de sua bela aparência, e não como ima
gens dos ancestrais. Sua posição era característica daquilo
que chamo de regime ético das imagens. Nesse regime, um
retrato ou uma estátua é sempre uma imagem de alguém e
sua legitimidade provém de sua relação com o homem ou o
deus que representa. O que Barthes opõe à lógica represen
tativa do studium é essa antiga função imaginai, essa função
de efígie, que garante a permanência da presença sensível de
um indivíduo. No entanto, ele escreve num mundo e num
século em que não só as obras de arte, mas também as ima
gens em geral, são apreciadas por si mesmas, e não como
almas de ancestrais. Portanto, ele precisa transformar a efí
gie do ancestral em punctum da morte, ou seja, em afeto pro
duzido diretamente sobre nós pelo corpo daquele que esteve
diante da objetiva, que já não está lá e cuja fixação sobre a
imagem significa o domínio da morte sobre o vivo.
Barthes realiza assim um curto-circuito entre o passa
do da imagem e a imagem da morte. Ora, esse curto-circui
to apaga os traços característicos da fotografia apresentada
por ele, que são traços de indeterminação. A singularidade
da fotografia de Lewis Payne, na verdade, decorre de três
formas de indeterminação. A primeira diz respeito à seu
dispositivo visual: o jovem está sentado segundo uma dis
posição bem pictórica, ligeiramente inclinado, na fronteira
de uma zona de luz e uma zona de sombra. Mas não pode
mos saber se a localização foi escolhida pelo fotógrafo e,
caso a tenha escolhido, se o fez preocupado com a visibili
dade ou por reflexo estético. Tampouco sabemos se ele sim
plesmente registrou as irregularidades e os traços desenha
dos nas paredes ou se os valorizou intencionalmente. A
segunda indeterminação diz respeito ao trabalho do tempo.
A textura da foto traz a marca de um tempo passado. Em
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compensação, o corpo, a roupa, a postura e a intensidade do
olhar do jovem podem ser situados sem dificuldade em nos
so presente, negando a distância temporal. A terceira inde-
terminação diz respeito à atitude da personagem. Mesmo
sabendo que ele vai morrer e por quê, é impossível ler nesse
olhar as razões de sua tentativa de assassinato e seus senti
mentos perante a morte iminente. A pensatividade da foto
grafia poderia então ser definida como esse nó entre várias
indeterminações. Poderia ser caracterizada como efeito da
circulação entre o motivo, o fotógrafo e nós, do intencional
e do não intencional, do sabido e do não sabido, do expresso
e do não expresso, do presente e do passado. Ao contrário
do que diz Barthes, essa pensatividade consiste aí na im
possibilidade de criar coincidência entre duas imagens, a
imagem socialmente determinada do condenado à morte e
a imagem de um jovem com uma curiosidade um tanto ne
gligente, a fixar um ponto que não vemos.
A pensatividade da fotografia seria, então, a tensão
entre vários modos de representação. A fotografia de Lewis
Payne apresenta-nos três imagens, ou melhor, três funções-
-imagens numa única imagem: há a caracterização de uma
identidade; há a disposição plástica intencional de um corpo
num espaço; e há os aspectos que o registro da máquina nos
revela sem que saibamos se foram intencionais. A fotografia
de Lewis Payne não é do domínio da arte, mas permite-nos
compreender outras fotografias que sejam intencionalmente
obras de arte ou apresentem simultaneamente caracteriza
ção social e indeterminação estética. Se voltarmos à adoles
cente de Rineke Dijkstra, compreenderemos por que ela é
representativa do lugar da fotografia na arte contemporânea.
Por um lado, ela pertence a uma série que representa seres
do mesmo gênero: adolescentes flutuando um pouco em seu
próprio corpo, indivíduos representando identidades em
transição, entre idades, condições sociais e modos de vida -
muitas dessas imagens foram feitas em ex-países comunis
tas. Mas, por outro lado, elas nos impõem presenças brutas,
seres sobre os quais não sabemos o que os levou a posar
diante de uma artista, nem o que pretendem mostrar e ex
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pressar diante da objetiva. Portanto, estamos diante deles na
mesma posição em que ficamos diante das pinturas do pas
sado que representam nobres florentinos ou venezianos que
não sabemos quem eram nem que pensamento habitava seu
olhar captado pelo pintor. Barthes opunha à semelhança se
gundo as regras do studium aquilo que chamei de arquisse-
melhança, presença de um afeto direto do corpo. Mas o que
podemos ler na imagem da adolescente polonesa não é nem
uma coisa nem outra. É o que chamarei de semelhança de
sapropriada. Essa semelhança não nos remete a nenhum ser
real com o qual pudéssemos comparar a imagem. Mas tam
bém não é a presença do ser único de que fala Barthes. É a
presença do ser qualquer, cuja identidade não tem importân
cia, ser que furta seus pensamentos ao oferecer seu rosto.
Podemos ser tentados a dizer que esse tipo de efeito
estético é próprio do retrato, segundo Benjamin o último
refúgio do "valor cultual". Em compensação, diz ele, quan
do o homem está ausente, o valor de exposição da fotografia
prevalece decididamente. Mas a distinção entre cultual e
exposicional que estrutura a análise de Benjamin talvez seja
tão problemática quanto a do studium e do punctum de Bar
thes. Vejamos, por exemplo, uma fotografia feita na época
em que Benjamin escrevia por um fotógrafo que, como ele,
incluía Atget e Sander entre suas referências favoritas, ou
seja, Walker Evans. É uma foto de um pedaço de parede de
madeira de uma cozinha no Alabama. Sabemos que essa
foto faz parte do contexto geral de uma iniciativa social com
a qual Walker Evans colaborou por algum tempo - a grande
pesquisa sobre as condições de vida dos camponeses pobres
que atuavam sob comandita, no fim da década de 1930, da
Farm Security Administration - e do contexto mais preciso
do livro feito em colaboração com James Agee, Let US Now
Praise Famous Men. Pertence agora a um corpus de fotogra
fias visto nos museus como obra autônoma de um artista.
Mas, olhando a foto, percebemos que a tensão entre arte e
reportagem social não decorre simplesmente do trabalho do
tempo que transforma em obras de arte os testemunhos so
bre a sociedade. A tensão já está no cerne da imagem. Por
111
Walker Evans, Kitchen Wall
in Bud Fields House, 1936.
Image Copyright ©The
Metropolitan Museum of
Art. Image source: Art
Resource, NY.
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possível saber se o aparelho simplesmente os registrou de
passagem ou se o fotógrafo os enquadrou e valorizou cons
cientemente, se viu aquela decoração como índice de um
modo de vida ou como uma reunião singular e quase abs
trata de linhas e objetos.
Não sabemos o que exatamente Walker Evans tinha
em mente ao tirar essa foto. Mas a pensatividade da foto não
se reduz a essa ignorância. Pois também sabemos que Walker
Evans tinha uma ideia precisa sobre fotografia, uma ideia
sobre arte, que, significativamente, não era extraída de um
artista visual, mas de um romancista por ele admirado,
Flaubert. Essa ideia é que o artista deve ser invisível em sua
obra, tal como Deus na natureza. Esse olhar sobre a dispo
sição estética singular dos acessórios de uma cozinha pobre
do Alabama pode lembrar-nos o olhar que Flaubert atribui
a Charles Bovary ao descobrir nas paredes escamadas da
fazenda de Rouault a cabeça de Minerva desenhada pela
colegial Emma para seu pai. Mas, sobretudo, na imagem fo
tográfica da cozinha do Alabama, assim como na descrição
literária da cozinha normanda, existe a mesma relação entre
a qualidade estética do motivo e o trabalho de impessoali-
zação da arte. Não nos deve enganar a expressão "qualidade
estética". Não se trata de sublimar um motivo banal por
meio do trabalho de estilo ou de enquadramento. O que
Flaubert e Evans fazem não é uma adjunção artística ao ba
nal. Ao contrário, é uma supressão: o que o banal adquire
neles é certa indiferença. A neutralidade da frase ou do en
quadramento cria uma flutuação nas propriedades de iden
tificação social. Essa flutuação criada é, assim, resultado de
um trabalho da arte para tornar-se invisível. O trabalho
da imagem prende a banalidade social na impessoalidade da
arte, retira-lhe o que faz dela a simples expressão de uma
situação ou de um caráter determinado.
Para compreender a "pensatividade" que está em jogo
nessa relação entre banal e impessoal, vale a pena dar m ais
um passo atrás no caminho que nos leva da adolescente de
Rineke Dijkstra à cozinha de Walker Evans e da cozinha
de Walker Evans à de Flaubert. Esse passo nos leva àquelas
113
pinturas de pequenos mendigos sevilhanos feitas por Mu-
rillo e conservadas na Galeria Real de Munique. Detenho-
-me nelas em razão de um comentário singular que Hegel
lhes dedicou em seu Curso de estética. Ele fala incidentemen
te sobre elas no desenvolvimento de um texto dedicado à
pintura de gênero flamenga e holandesa, no qual se empe
nha em inverter a clássica avaliação do valor dos gêneros de
pintura em função da dignidade de seus motivos. Mas Hegel
não se limita a dizer que todos os motivos são igualmente
apropriados à pintura. Estabelece uma relação estreita entre
a virtude dos quadros de Murillo e a atividade daqueles pe
quenos mendigos, que consiste precisamente em não fazer
nada, em não se preocupar com nada. Há neles, segundo
nos diz, total despreocupação com o exterior, uma liberdade
interior no exterior que é exatamente aquilo que o conceito
de ideal artístico reivindica. Eles demonstram uma bem-
-aventurança quase semelhante à dos deuses olímpicos27.
Para fazer esse comentário, Hegel já precisa ter como
evidente que a virtude essencial dos deuses é não fazer
nada, não se preocupar com nada e não querer nada. Preci
sa ter como evidente que a suprema beleza é a beleza que
expressa essa indiferença. Essas crenças não são óbvias. Ou
melhor, só se tornam óbvias em função de uma ruptura já
efetuada na economia da expressividade, bem como na re
flexão sobre a arte e o divino. A beleza "olímpica" que Hegel
atribui aos pequenos mendigos é a beleza do Apoio do Bel
vedere que sessenta anos antes fora celebrada por Winckel-
mann, a beleza da divindade despreocupada. A imagem
pensativa é a imagem de uma suspensão de atividade, aqui
lo que Winckelmann, por outro lado, ilustrava na análise do
Torso do Belvedere: para ele, aquele torso era de um Hércu
les em repouso, um Hércules a pensar serenamente em seus
feitos passados, mas cujo pensamento se expressava por in
teiro nas pregas do dorso e do ventre, cujos músculos fluíam
uns para os outros como vagas que se elevam e caem. A
atividade tornou-se pensamento, mas o próprio pensamento
27. Hegel, Cours d'esthétique, trad. fr. Jean-Pierre Lefebvre e Verónica von
Schenck, Aubier, 1995,1 .1, p. 228.
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passou para um movimento imóvel, semelhante à radical
indiferença das vagas do mar.
O que se manifesta na serenidade do Torso ou dos pe
quenos mendigos, o que confere virtude pictórica à fotogra
fia da cozinha do Alabama ou da adolescente polonesa é
uma mudança de estatuto nas relações entre pensamento,
arte, ação e imagem. É essa mudança que marca a passagem
de um regime representativo da expressão a um regime es
tético. A lógica representativa dava à imagem o estatuto de
complemento expressivo. O pensamento da obra - seja ela
verbal ou visual - realizava-se na forma de "história", ou
seja, de composição de uma ação. A imagem destinava-se
então a intensificar a força dessa ação. Essa intensificação
tinha duas grandes formas: por um lado, a dos traços de
expressão direta, que traduzem na expressão dos rostos e na
atitude dos corpos os pensamentos e os sentimentos que
animam as personagens e determinam suas ações; por ou
tro lado, a das figuras poéticas que põem uma expressão no
lugar de outra. Nessa tradição, a imagem era, portanto, duas
coisas: representação direta de um pensamento ou de um
sentimento; e figura poética que substitui uma expressão
por outra para aumentar sua força. Mas a figura podia de
sempenhar esse papel porque existia uma relação de com
patibilidade entre o termo "próprio" e o termo "figurado",
por exemplo entre águia e majestade ou entre leão e cora
gem. Apresentação direta e deslocamento figurai eram as
sim unificados sob um mesmo regime de semelhança. É
essa homogeneidade entre as diferentes semelhanças que
define propriamente a mimese clássica.
É em relação a esse regime homogêneo que ganha
sentido aquilo que chamei de semelhança desapropriada. É
frequente descrever-se a ruptura estética moderna como
passagem do regime da representação a um regime de pre
sença ou apresentação. Essa visão deu ensejo a duas gran
des visões da modernidade artística: há o modelo feliz de
autonomia da arte em que a ideia artística se traduz em for
mas materiais, com um curto-circuito na mediação da ima
gem; e há o modelo trágico do "sublime" em que a presença
115
sensível manifesta, ao contrário, a ausência de qualquer re
lação comensurável entre ideia e materialidade sensível.
Ora, nossos exemplos possibilitam conceber uma terceira
maneira de pensar a ruptura estética: esta não é a supressão
da imagem na presença direta, mas sua emancipação em
relação à lógica unificadora da ação; não é a ruptura da rela
ção entre inteligível e sensível, mas um novo estatuto da fi
gura. Em sua acepção clássica, a figura conjungia dois signi
ficados: era uma presença sensível e era uma operação de
deslocamento que punha uma expressão no lugar de outra.
Mas, no regime estético, a figura já não é simplesmente uma
expressão que vem para o lugar de outra. São dois regimes
de expressão que se encontram entrelaçados sem relação
definida. E isso que a descrição de Winckelmann emblema-
tiza: o pensamento está nos músculos, que são como vagas
de pedra; mas não há nenhuma relação de expressão entre
o pensamento e o movimento das vagas. O pensamento
passou para alguma coisa que não se lhe assemelha por ne
nhuma analogia definida. E a atividade orientada dos mús
culos passou para seu contrário: a repetição indefinida, pas
siva, do movimento.
A partir daí é possível pensar positivamente a pensa-
tividade da imagem. Ela não é a aura ou o punctum do apa
recimento único. Mas também não é simplesmente nossa
ignorância do pensamento do autor ou a resistência da ima
gem à nossa interpretação. A pensatividade da imagem é
produto desse novo estatuto da figura que conjunge dois
regimes de expressão sem os homogeneizar. Para compreen
dê-lo, voltemos à literatura, a primeira que tornou explícita
essa função da pensatividade. Em S/Z, Roland Barthes co
mentava a última frase de Sarrasine de Balzac: "A marquesa
ficou pensativa." O adjetivo "pensativa" chamava com razão
a sua atenção: parece designar um estado de espírito da per
sonagem. Mas, no lugar onde é posto por Balzac, na realida
de faz exatamente outra coisa. Realiza um deslocamento do
estatuto do texto. Isto porque estamos no fim de uma narra
tiva: o segredo da história foi revelado, e essa revelação pôs
fim às esperanças do narrador em relação à marquesa. Ora,
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no exato momento em que a narrativa chega ao fim, a "pen-
satividade" vem negar esse fim; vem suspender a lógica
narrativa em favor de uma lógica expressiva indeterminada.
Barthes via nessa "pensatividade" a marca do "texto clássi
co", uma maneira como esse texto significava que ainda ti
nha sentidos de reserva, ainda um excedente de plenitude.
Acredito ser possível fazer uma análise totalmente diferente
e ver nessa "pensatividade", ao contrário de Barthes, uma
marca do texto moderno, ou seja, do regime estético da ex
pressão. A pensatividade vem realmente contrariar a lógica
da ação. Por um lado, prolonga a ação que estava parando.
Mas, por outro, suspende qualquer conclusão. O que se in
terrompe é a relação entre narração e expressão. A história
fica bloqueada num quadro. Mas esse quadro marca uma
inversão da função da imagem. A lógica da visualidade já
não vem suplementar a ação. Vem suspendê-la, ou melhor,
substituí-la.
É isso o que outro romancista, Flaubert, pode fazer-
-nos compreender. Cada um dos momentos amorosos que
pontuam M adam e Bovary é marcado por um quadro, por
uma pequena cena visual: uma gota de neve fundida caindo
sobre a sombrinha de Emma, um inseto sobre uma folha de
nenúfar, gotas de água ao sol, nuvem de poeira de uma di
ligência. São esses quadros, essas impressões fugazes e pas
sivas que desencadeiam os acontecimentos amorosos. É
como se a pintura viesse tomar o lugar do encadeamento
narrativo do texto. Esses quadros não são simples cenários
da cena amorosa; também não simbolizam o sentimento
amoroso: não há nenhuma analogia entre um inseto sobre
uma folha e o nascimento de um amor. Portanto, não são
complementos de expressividade trazidos à narração. A n
tes, trata-se de uma troca de papéis entre a descrição e a
narração, entre a pintura e a literatura. O processo de im-
pessoalização pode ser aí formulado como a invasão da ação
literária pela passividade pictórica. Em termos deleuzianos,
seria possível falar em heterogênese. O visual suscitado pela
frase já não é um complemento de expressividade. Tampou
co é simples suspensão, como a pensatividade da marquesa
117
de Balzac. É o elemento da construção de outra cadeia nar
rativa: um encadeamento de microeventos sensíveis que
vem substituir o encadeamento clássico das causas e dos
efeitos, dos fins projetados, de suas realizações e suas con
sequências. O romance constrói-se então como a relação
sem relação entre duas cadeias factuais: a cadeia da narra
tiva orientada do começo para o fim, com nó e desfecho, e
a cadeia dos microeventos que não obedece a essa lógica
orientada, mas se dispersa de maneira aleatória sem co
meço nem fim, sem relação entre causa e efeito. Sabe-se
que Flaubert foi representado ao mesmo tempo como papa
do naturalismo e decantador da arte pela arte. Mas natu
ralismo e arte pela arte são apenas maneiras unilaterais de
designar uma única e mesma coisa, a saber, o entrelaça
mento de duas lógicas que é como a presença de uma arte
na outra.
Se voltarmos à fotografia de Walker Evans, podere
mos compreender a referência do fotógrafo ao romancista.
Essa fotografia não é nem o registro bruto de um fato social,
nem a composição de um esteta que faça arte pela arte à
custa dos pobres camponeses cuja miséria ele deve mostrar.
Marca a contaminação de duas artes, de duas maneiras de
"mostrar": o excesso literário, o excesso daquilo que as pa
lavras projetam sobre aquilo que designam vem habitar a
fotografia de Walker Evans, assim como o mutismo pictóri
co habitava a narração literária de Flaubert. O poder de
transformação do banal em impessoal, forjado pela literatu
ra, sulca a partir do interior a aparente evidência, a aparente
imediatez da foto. A pensatividade da imagem é então a
presença latente de um regime de expressão em outro. Um
bom exemplo contemporâneo dessa pensatividade pode ser
dado pelo trabalho de Abbas Kiarostami entre cinema, foto
grafia e poesia. Sabe-se da importância que as estradas têm
em seus filmes. Sabe-se também que ele lhes dedicou várias
séries fotográficas. Essas imagens são, exemplarmente, ima
gens pensativas pela maneira como conjungem dois modos
de representação: a estrada é um trajeto orientado de um
ponto a outro e é, inversamente, um puro traçado de linhas
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ou espirais abstratas sobre um território. Seu filme Roads o f
Kiarostami organiza uma passagem notável entre esses dois
tipos de estrada. A câmara de início parece percorrer as fo
tografias do artista. Como filma em preto e branco fotogra
fias coloridas, ela acusa seu caráter gráfico, abstrato; trans
forma as paisagens fotografadas em desenhos ou mesmo
em caligrafias. Mas a certa altura o papel da câmara se in
verte. Ela parece tornar-se um instrumento cortante que
rasga aquelas superfícies semelhantes a folhas de desenho,
devolvendo aqueles grafismos à paisagem da qual tinham
sido abstraídos. Assim, filme, fotografia, desenho, caligrafia
e poema vêm misturar seus poderes e intercambiar suas
singularidades. Já não é simplesmente a literatura que cons
trói seu tornar-se-pintura imaginário, nem a fotografia que
evoca a metamorfose literária do banal. São os regimes de
expressão que se entrecruzam e criam combinações singu
lares de trocas, fusões e afastamentos. Essas combinações
criam formas de pensatividade da imagem que refutam a
oposição entre o studium e o punctum, entre a operatividade
da arte e a imediatez da imagem. A pensatividade da ima
gem não é então privilégio do silêncio fotográfico ou pictó
rico. O próprio silêncio é certo tipo de figuralidade, certa
tensão entre regimes de expressão que é também um jogo
de trocas entre os poderes de mídias diferentes.
Essa tensão pode então caracterizar modos de produ
ção de imagens cuja artificialidade parece, a priori, vedar a
pensatividade da frase, do quadro ou da foto. Penso aqui na
imagem de vídeo. Na época do desenvolvimento da arte do
vídeo, na década de 1980, alguns artistas pensaram a técni
ca nova como meio de uma arte desembaraçada de toda e
qualquer submissão passiva ao espetáculo do visível. De
fato, a matéria visual já não era produzida pela impressão de
um espetáculo sobre uma película sensível, mas pela ação
de um sinal eletrônico. A arte do vídeo devia ser a arte de
formas visíveis engendradas diretamente pelo cálculo de
um pensamento artístico, dispondo de uma matéria infini
tamente maleável. Assim, a imagem de vídeo já não era re
almente uma imagem. Como dizia um dos defensores dessa
119
arte: "Estritamente, não existe nenhum instante no tempo
durante o qual se possa dizer que a imagem de vídeo exis
te."28 Em suma, a imagem de vídeo parecia destruir o que
era peculiar na imagem, ou seja, sua parcela de passividade
resistente ao cálculo técnico dos fins e dos meios e à leitura
adequada dos significados no espetáculo do visível. Parecia
destruir o poder de suspensão peculiar à imagem. Nisso al
guns viam o meio de uma arte inteiramente senhora de seu
material e de seus meios; outros, ao contrário, viam a perda
da pensatividade cinematográfica. Em seu livro Le Champ
aveugle [O campo cego], Pascal Bonitzer denunciava essa
superfície maleável em perpétua metamorfose. O que desa
parecia eram os cortes organizadores da imagem: o quadro
cinematográfico, a unidade do plano, os cortes entre o den
tro e o fora, o antes e o depois, o campo e o fora de campo, o
próximo e o distante. Portanto, era também toda a economia
afetiva ligada a esses cortes que desaparecia. O cinema,
como a literatura, vivia da tensão entre uma temporalidade
do encadeamento e uma temporalidade do corte. O vídeo
fazia desaparecer essa tensão em proveito de uma circulação
infinita das metamorfoses da matéria dócil.
Ora, ocorreu com a arte do vídeo o mesmo que com a
fotografia. Sua evolução desmentiu o dilema entre antiarte
ou arte radicalmente nova. A imagem de vídeo também
soube conquistar o lugar de uma heterogênese, de uma ten
são entre diversos regimes de expressão. É o que nos leva a
compreender uma obra característica dessa época. TheArt o f
Memory, de Woody Vasulka, realizada em 1987, é obra de
um artista que se concebia então como escultor a manipular
a argila da imagem. No entanto, aquela escultura da ima
gem cria uma forma inédita de pensatividade. A homoge
neidade do material e do tratamento videográfico presta-se
a várias diferenciações. Por um lado, temos uma mistura de
dois tipos de imagem: há imagens que podem ser conside
radas analógicas, não no sentido técnico, mas no sentido de
apresentarem paisagens e personagens do modo como es
tas poderiam aparecer na abertura de uma objetiva ou sob o
28. Hollis Frampton, L'Écliptique du savoir, Centre Georges Pompidou, 1999, p. 92.
120
pincel de um pintor: uma personagem a usar um boné, uma
espécie de criatura mitológica que aparece no topo de um
rochedo, um cenário de deserto cujas cores foram trucadas
eletronicamente, mas que nem por isso deixa de apresentar-
-se como o análogo de uma paisagem real. Ao lado disso, há
toda uma série de formas metamórficas dadas explicita
mente como artefatos, como produções do cálculo e da má
quina. Pela forma, mostram-se como esculturas moles; pela
textura, como seres feitos de puras vibrações luminosas. São
como vagas eletrônicas, puros comprimentos de ondas sem
correspondência com nenhuma forma natural e sem ne
nhuma função expressiva. Ora, essas vagas eletrônicas so
frem duas metamorfoses que as convertem no teatro de
uma pensatividade inédita. Em primeiro lugar, a forma mole
se estende numa tela, no meio da paisagem desértica. Nessa
tela, vemos projetar-se imagens características da memória
de um século: o cogumelo da bomba de Hiroshima ou os
episódios da guerra civil espanhola. Mas a forma-tela, com
os meios de tratamento do vídeo, sofre outra metamorfose.
Torna-se o caminho montanhoso por onde passam os com
batentes, o cenotáfio dos soldados mortos ou uma rotativa
de imprensa da qual saem retratos de Durruti. A forma ele
trônica torna-se assim um teatro da memória. Torna-se uma
máquina de transformar o representado em representante,
o suporte em motivo, o documento em monumento.
Mas, ao realizar essas operações, essa forma se recusa
a reduzir-se à pura expansão da matéria metamórfica. Mes
mo quando se torna suporte ou teatro de ação, continua a
funcionar como tela, em seus dois sentidos. A tela é uma
superfície de manifestação, mas também uma superfície
opaca que impede as identificações. Assim, a forma eletrô
nica separa as imagens cinzentas do arquivo das imagens
coloridas da paisagem de western. Portanto, separa dois re
gimes de imagens analógicas. Ao separá-los, divide sua
própria homogeneidade. Descarta a pretensão a uma arte
em que o cálculo artístico se traduz exatamente na matéria
visível. A pensatividade da imagem é essa distância entre
duas presenças: as formas abstratas engendradas pelo pin-
121
cel eletrônico criam um espaço mental em que as imagens e
os sons da Alemanha nazista, da guerra civil espanhola ou
da explosão de Hiroshima recebem a forma visual que cor
responde àquilo que elas são para nós: imagens de arquivos,
objetos de saber e memória, mas também obsessões, pesa
delos ou saudades. Vasulka cria um espaço memorial cere
bral e, alojando nele as imagens das guerras e dos horrores
do século, descarta os debates sobre o irrepresentável moti
vados pela desconfiança em relação ao realismo da imagem
e seus poderes emocionais. Mas, inversamente, os aconteci
mentos do século privam o vídeo do sonho da ideia a en
gendrar sua própria matéria. Impõem-lhe as formas visuais
que são aquelas nas quais se conservam e constituem uma
memória coletiva: filmes, telas, livros, cartazes ou monu
mentos. A pensatividade da imagem é então essa relação
entre duas operações que põe fora de si mesmos a forma
pura demais ou o acontecimento carregado demais de reali
dade. Por um lado, a forma dessa relação é determinada
pelo artista. Mas, por outro, é só o espectador que pode fixar
a medida da relação, é só o seu olhar que confere realidade
ao equilíbrio entre as metamorfoses da "matéria" informá
tica e a encenação da história de um século.
É tentador comparar essa forma de pensatividade com
a que é posta em jogo por outro monumento edificado pelo
vídeo para a história do século XX, Histoires du cinéma de
Godard. Este último sem dúvida trabalha de maneira to
talmente diferente de Vasulka. Não constrói nenhuma má
quina de memória. Cria uma superfície na qual todas as
imagens podem deslizar umas sobre as outras. Define a
pensatividade das imagens com dois traços essenciais. Por
um lado, cada uma ganha ares de uma forma, uma atitu
de, um gesto parado. Cada um desses gestos contém, de
alguma maneira, o poder que Balzac atribuía à sua marque
sa - o de condensar uma história num quadro - , mas tam
bém o de pôr outra história a caminho. Cada um desses
instantâneos pode então ser destacado de seu suporte par
ticular, deslizar sobre outro ou acoplar-se com outro: o pla
no de cinema com o quadro, a foto ou a atualidade cine
122
matográfica. É o que Godard chama de fraternidade das
metáforas: a possibilidade de uma atitude desenhada pelo
lápis de Goya associar-se com o desenho de um plano cine
matográfico ou com a forma de um corpo supliciado nos
campos de concentração nazistas, captado pela objetiva fo
tográfica; a possibilidade de escrever de múltiplos modos a
história do século, em virtude dos dois poderes de cada
imagem: o de condensar uma multiplicidade de gestos sig
nificativos de um tempo e o de associar-se com todas as
imagens dotadas do mesmo poder. Assim, no fim do pri
meiro episódio das Histórias, o jovem da Cena de banho de
Asnières de Seurat ou os passeantes de Tarde de domingo na
Grande Jatte tornam-se figuras da França de maio de 1940, a
França do Front Popular e das férias pagas, apunhalada por
uma Alemanha nazista simbolizada por uma devassa poli
cial extraída de O Vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang, após
o que vemos blindados, extraídos de atualidades cinemato
gráficas, enfiar-se nas paisagens impressionistas, enquanto
alguns planos extraídos de filmes - A M orte de Siegfried, O
Testamento áo Doutor Mabuse, Ser ou não ser - vêm mostrar
que as imagens do cinema já tinham desenhado as formas
daquilo que, com a guerra e os campos de extermínio, se
tornaria imagens de atualidade cinematográfica. Não volta
rei à análise dos procedimentos de Godard29. O que me in
teressa aqui é a maneira como ele põe em prática o trabalho
da figura em três níveis. Em primeiro lugar, ele radicaliza a
forma de figuralidade que consiste em entrelaçar duas lógi
cas de encadeamento: cada elemento é articulado a cada um
dos outros segundo duas lógicas, a do encadeamento narra
tivo e a da metaforização infinita. Num segundo nível, a fi
guralidade é o modo como várias artes e várias mídias in~
tercambiam seus poderes. Mas, num terceiro nível, é o
modo como uma arte serve para constituir o imaginário de
outra. Godard quer fazer com as imagens do cinema aquilo
que o próprio cinema não fez, porque traiu sua vocação ao
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sacrificar a fraternidade das metáforas ao comércio das his
tórias. Ao desligar as metáforas das histórias para com elas
fazer outra "história" Godard faz esse cinema que não foi.
Mas o faz com os meios da montagem de vídeo. Constrói,
na tela de vídeo, com os meios do vídeo, um cinema que
jamais existiu.
Essa relação de uma arte consigo mesma pela media
ção de outra pode fornecer uma conclusão provisória a esta
reflexão. Tentei dar algum conteúdo a essa noção de pensa-
tividade que na imagem designa algo que resiste ao pen
samento, ao pensamento daquele que a produziu e daquele
que procura identificá-lo. Ao explorar algumas formas des
sa resistência, quis mostrar que ela não é uma propriedade
constitutiva da natureza de certas imagens, mas um jogo
de separações entre várias funções-imagens presentes na
mesma superfície. Entende-se então por que o mesmo jogo
de separações apresenta-se tanto na arte quanto fora dela,
e como as operações artísticas podem construir essas for
mas de pensatividade pelas quais a arte escapa a si mesma.
Esse problema não é novo. Kant já apontava a separação
entre a forma artística, a forma determinada pela intenção
da arte, e a forma estética, aquela que é percebida sem con
ceito e rechaça qualquer ideia de finalidade intencional.
Kant chamava de ideias estéticas as invenções da arte capa
zes de estabelecer a junção entre duas "formas", que é tam
bém um salto entre dois regimes de apresentação sensível.
Tentei pensar essa arte das "ideias estéticas" ampliando o
conceito de figura, para fazê-la significar não mais a subs
tituição de um termo por outro, mas o entrelaçamento de
vários regimes de expressão e do trabalho de várias artes
e várias mídias. Inúmeros comentadores quiseram ver nas
novas mídias eletrônicas e informáticas o fim da alteridade
das imagens, quando não o fim das invenções da arte. Mas
o computador, o sintetizador e as tecnologias novas em seu
conjunto não significaram o fim da imagem e da arte tanto
quanto a fotografia ou o cinema em seu tempo. A arte da
era estética não deixou de se valer da possibilidade que
cada mídia podia oferecer de misturar seus efeitos aos das
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outras, de assumir seu papel e de criar assim figuras novas,
redespertando possibilidades sensíveis que haviam esgota
do. As técnicas e os suportes novos oferecem possibilidades
inéditas a essas metamorfoses. A imagem não deixará tão
cedo de ser pensativa.
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