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Literatura Angolana e Ondjaki - Memória e Identidade (Trabalho Final)

Este documento discute a produção literária de Ondjaki, escritor angolano contemporâneo, e como sua obra "Bom Dia, Camaradas" (2001) se relaciona com o contexto histórico e literário de Angola. Primeiramente, resume a consolidação do campo literário angolano a partir do século XIX através de publicações que questionavam o sistema colonial e contribuíram para a formação de uma identidade nacional. Em seguida, analisa como a obra de Ondjaki revisita a Angola da década de 1980 at

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Literatura Angolana e Ondjaki - Memória e Identidade (Trabalho Final)

Este documento discute a produção literária de Ondjaki, escritor angolano contemporâneo, e como sua obra "Bom Dia, Camaradas" (2001) se relaciona com o contexto histórico e literário de Angola. Primeiramente, resume a consolidação do campo literário angolano a partir do século XIX através de publicações que questionavam o sistema colonial e contribuíram para a formação de uma identidade nacional. Em seguida, analisa como a obra de Ondjaki revisita a Angola da década de 1980 at

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS


DISCIPLINA DE SOCIOLOGIA DA LITERATURA

A LITERATURA ANGOLANA E ONDJAKI


MEMRIA E IDENTIDADE

PAULA BESSA BRAZ

Trabalho apresentado para a


disciplina de Sociologia da
Literatura, ministrada pela
Prof Andra Borges Leo

FORTALEZA
NOVEMBRO/2014

Problematizar as produes literrias dentro do seu contexto de surgimento sem,


entretanto, delas retirar os aspectos propriamente literrios uma das difceis tarefas
reservadas a uma sociologia da literatura. Embora sempre possa ser feita uma anlise
esttica e literria das obras, as correlaes entre estas e os processos sociais de que
decorrem so anteriores mesmo ao prprio processo de escrita. Os marcadores externos
de que fala Antnio Cndido (1965) so esses fatores externos que se internalizam na
obra1. Dentro desta abordagem, na qual situo o presente trabalho, o autor perde a sua
qualidade mitificada para dar lugar a um sujeito social cuja trajetria se revela
fundamental para sua posio em relao ao campo literrio2. Como traz Bourdieu,
A cincia das obras culturais supe trs operaes [...] primeiramente,
a anlise da posio do campo literrio (etc.) no seio do campo do
poder, e de sua evoluo no decorrer do tempo; em segundo lugar, a
anlise da estrutura interna do campo literario (etc.), universo que
obedece as suas prprias leis de funcionamento e de transformao, isto
, a estrutura das relaes objetivas entre as posies que a ocupam
indivduos [...] enfim, a anlise da gnese dos habitus dos ocupantes
dessas posies, ou seja, os sistemas de disposies que, sendo o
produto de uma trajetoria social e de uma posio no interior do campo
literrio (etc.), encontram nessa posio uma oportunidade mais ou
menos favorvel de atualizar-se (a construo do campo e a condio
lgica prvia para a construo da trajet6ria social como serie das
posies ocupadas sucessivamente nesse campo. (BOURDIEU, 2002,
p.243)

Nesse exerccio de vincular a trajetria obra, retira-se tambm, do autor, a


responsabilidade nica pela criao e intencionalidade, identificando e problematizando
tambm os processos de mediao que se do desde a escrita at a veiculao e leitura da
obra.
a partir desses caminhos de reflexo que pretendo discutir brevemente a
produo e trajetria do autor luandense contemporneo Ondjaki, primeiramente trazendo
uma perspectiva histrica de consolidao do campo literrio na Angola para, em seguida,
situar a literatura e autoria de Ondjaki nesse contexto, concentrando as discusses no seu
romance de estreia Bom Dia, Camaradas3, publicado em 2001 pelas Edies Ch de
A obra depende [...] do artista e das condies sociais que determinam a sua posio (CNDIDO,
Antonio, 1965, p.35)
2
Para Bourdieu, somente a partir do sculo XIX que possvel falar na existncia de um campo literrio
autnomo.
3
Antes de Bom dia, Camaradas, Ondjaki havia publicado o livro Actu Sanguneu, em 2000, de poesias.
Alm desses dois livros, Ondjaki publicou: Momentos de Aqui (contos, 2001), O Assobiador (novela,
2002), H Prendisajens com o Xo (poesia, 2002), Ynari: A Menina das Cinco Tranas (infantil, 2004),
Quantas Madrugadas Tem A Noite (romance, 2004), E se Amanh o Medo (contos, 2005), Os da minha
rua (contos, 2007), AvDezanove e o segredo do sovitico (romance, 2008), O leo e o coelho
saltito (infantil, 2008), Materiais para confeco de um espanador de tristezas (poesia, 2009), Os vivos, o
morto e o peixe-frito (ed. brasileira / teatro, 2009), O voo do Golfinho (infantil, 2009), dentro de mim faz
1

Caxinde4, inicialmente apenas em Luanda. Nessa obra, Ondjaki revisita a Angola de sua
infncia atravs do dilogo entre as memrias de uma criana e o perodo histrico e
poltico pelo qual o pas passava. A narrativa feita na primeira pessoa, e traz as cenas
cotidianas de um menino que vive na Luanda de 1980-1990, em que angolanos, cubanos
e soviticos convivem numa mesma nao e dividem suas expectativas acerca dos rumos
que tomava essa Angola recm independente. A particularidade da obra est na difcil
separao entre as memrias do autor e a fico. Sobre este processo, ele mesmo comenta,
ao ser perguntado se se tratava de um livro autobiogrfico5:
Com certeza um livro ficcionado. Os timings esto alterados, os
personagens, h uns que exagerei um pouco. H a uma espcie de
sugesto ao romance entre o personagem principal e uma amiga minha,
Romina, que no aconteceu, mas que eu achava que ficava bonito na
histria. Claro, eu gostaria que tivesse acontecido, quando eu era mais
novo. Mas o livro autobiogrfico. Todos os nomes so verdicos, todas
as pessoas ainda existem. (ONDJAKI, 2007)

Ao mesmo tempo em que Ondjaki se vale de suas memrias na construo de uma


narrativa ficcionada para contar a infncia de um menino no-nomeado e suas formas
de ver e viver o mundo, ele conta tambm a histria de Luanda.
A histria da literatura angolana perpassa a prpria histria da Angola enquanto
nao e tambm a histria da sua representao na literatura a formao da
nacionalidade angolana corresponde formao de uma literatura nacional (DUTRA,
2011), como veremos. quando, a partir de uma extensa tradio de literatura oral6
elabora-se uma escrita literria que tem a fora da palavra falada, mas que no se origina
na literatura: na imprensa e nos textos jornalsticos que, no sculo XIX, surgiram as
primeiras manifestaes escritas de contestao e revolta quanto ao sistema colonial - e,
junto a esses textos, um esboo de conscincia e identidade nacional tambm era escrito.
Como afirma Rita Chaves,

Sul (poesia, 2010), a bicicleta que tinha bigodes (juvenil, 2011), Os Transparentes (romance, 2012), Uma
escurido bonita (juvenil, Brasil/Portugal, 2013), Sonhos azuis pelas esquinas (contos, Portugal/Brasil,
2014).
4
Editora e livraria fundada na cidade de Luanda em 1997, inspirada pelo prmio Cames recebido pelo
escritor Pepetela nesse mesmo ano, segundo consta no endereo http://on.fb.me/1vrl4Sv. Acesso em
19/11/2014.
5
Entrevista realizada pelo programa Roda Viva em 15/01/2007, com transcrio disponvel em
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/238/entrevistados/ondjaki_2007.htm. Acesso em 17/11/2014
6
Terminologia criada por Paul Sbillot ao final do sculo XIX, englobando manifestaes culturais e
narrativas que no eram transmitidas por grafias, mas atravs da fala e dos gestos. (SOUSA, 2005). A
tradio oral angolana marcada pelo uso das lnguas umbundu e o quimbondo ou kimbundo. (DUTRA,
2011)

A atuao jornalstica assume, desde a segunda metade do sculo XIX,


uma impressionante importncia no cenrio de vida luandense.
Sucedem-se, na capital, os ttulos de publicaes cujos caminhos vo
de um jornalismo que cultua o gosto da polmica at uma marca mais
consequente de uma opo voltada preferencialmente para os interesses
de uma pequena burguesia j insatisfeita com os princpios e as prticas
da administrao portuguesa. (CHAVES, 1999, p.33)

A extino do comrcio escravista ao final do sculo XIX foi um importante fator


para que a elite angolana se consolidasse. A pequena burguesia e os intelectuais angolanos
faziam uso desses folhetins para denunciar as falhas e os problemas do sistema colonial,
ressaltando a importncia de se dissociar do colonizador; importncia esta expressa a
partir da expresso nao angolana, que se tornou frequente e comum a partir de ento,
distinta da identidade evocada pelo colonizador. Essa gerao de escritores ficou
conhecida como a gerao de 18807, que aspirava para a ento colnia uma literatura
prpria, a partir dessa problematizao cultural8.
A partir dessa gerao de autores, as produes literrias angolanas foram sendo
elaboradas em torno desses questionamentos que problematizavam a Angola, o homem
angolano, as afirmaes culturais e as caractersticas locais (o uso de termos da lngua
quimbundo em alguns textos e obras de ento representam, por exemplo, o esforo de
romper com a cultura imposta do colonizador, tambm representada pela lngua
portuguesa). Essas publicaes intensificam os debates acerca dos problemas enfrentados
pela colnia, mas ainda eram de alcance bastante reduzido, tendo em vista o alto ndice
de analfabetismo da poca. Entretanto, o marco da consolidao da produo literria
angolana enquanto sistema literrio se deu apenas em 1929, com a publicao do romance
de costumes O Segredo da Morta, de Antnio Assis Jr.9 O livro, escrito na dcada de
1920, aborda a sociedade luandense no perodo da infncia do autor, entre 1880 e 1890,
quando as contradies do sistema colonial j se evidenciavam entre as elites angolanas.
Essa obra rompe com um hiato de produes literrias que teve incio por volta de
1910, e retoma as vozes adormecidas dos discursos possveis sobre o pas (DUTRA,
2011), trazendo em sua narrativa uma atmosfera notadamente angolana, contrapondo-a
ao exotismo com que o colonizador tratava as caractersticas do pas, expondo, assim, a
complexidade e a diviso entre os mundos colonizador x colonizado na cidade de Luanda.
Posteriormente, essa gerao foi denominada de Os Velhos Intelectuais de Angola (TAVARES, 1999).
Nomes como Alfredo Troni, inaugurador da prosa angolana na lngua portuguesa e dirigente de vrios
estabelecimentos jornalsticos; Joaquim Cordeiro da Matta, estudioso do quimbundo; Inocncio Mattoso,
Pedro Flix Machado, Jos de Fontes Pereira entre outros compunham esse grupo.
9
Publicado inicialmente na forma de folhetim, em 1929, e seis anos depois na forma de livro. (DUTRA,
2011) A importncia dos folhetins para a veiculao literria ainda era muito forte.
7
8

Em oposio viso eurocntrica da qual a literatura colonial se nutria, essa obra traz
uma marca forte de angolanidade, um outro registro de uma identidade nacional,
atravs de uma narrativa hbrida, com provrbios e termos da tradio oral. A inexistncia
de um pblico leitor e a coexistncia de diversas lnguas tradicionais, entretanto, ainda
impunham alguma dificuldade na elaborao desse imaginrio nacional de identidade.
Mas apenas uma dcada depois, aproximadamente, que a noo de identidade
nacional (de angolanidade10) vai se consolidar na literatura angolana. Segundo Ana Paula
Tavares,
Angola entra na dcada de quarenta com o sistema colonial e os seus
modelos e padres, practicamente estabelecidos. Economicamente as
produes do caf e do algodo tinham obrigado a uma reordenao dos
espaos. A quadrcula da ocupao reduzira consideravelmente a
iniciativa e capacidade de resposta dos africanos. O interior do pas
fechava-se. s cidades [...] os ecos dos movimentos mundiais (panafricanismo, negritude) iam chegando. Nas colnias de lingua inglesa
criavam-se as primeiras universidades. Nas principais cidades da
colnia, instituies de carcter mais ou menos associativo, operativas
desde o princpio dos anos quarenta e que possuem os seus prprios
orgos de imprensa, reservam margens de liberdade para dar espao
questo angolana que entretanto se ia de uma maneira ou de outra
formulando. (TAVARES, 1999, p.126-127)

esse o contexto em que se organiza o movimento conhecido como Novos


Intelectuais de Angola (ou Vamos descobrir Angola, o lema dos velhos nacionalistas
intelectuais), composto por um grupo de escritores militantes que objetivavam recuperar
as razes identitrias e resgatar a autenticidade e humanidade do homem angolano,
inaugurando a poesia e um nacionalismo moderno da produo literria angolana, a fim
de desarticular o discurso da dominao. Esse movimento foi espelhado no modernismo
brasileiro, com a proposta de consolidar uma conscincia nacional e atualizar as
produes artsticas atravs da apropriao da cultura imposta e de uma permanente
pesquisa. A relao entre a literatura angolana e a literatura brasileira, entretanto, data
desde o incio das expresses literrias na angola, a partir do sculo XIX. A respeito disso,
Salvato Trigo afirma:
Ser fcil de compreender que o Brasil, que atraiu a intelectualidade
africana de expresso portuguesa, foi o que saiu do grito de Ipiranga de
1822. Foi o Brasil do Abolicionismo; no o escravocrata. Isto significa
que no interessa recuar aqum do sc. XIX [...] tambm porque estas
[as literaturas africanas de expresso portuguesa] s comeam a dar os

10

Termo utilizado pelo autor em diversas entrevistas para se referir a uma caracterstica particular
angolana.

primeiros passos justamente a partir da metade desse sculo. (TRIGO,


1986, p.41)

Segundo Chaves, os princpios do grupo consistiram em uma atualizao das propostas


dos Velhos Intelectuais de Angola, mas agora com novos fundamentos. So eles:
a valorizao do patrimnio cultural das populaes (com destaque para
as lnguas nacionais), a utilizao da natureza como trao de
identificao, o apreo pela tradio oral, a redignificao dos naturais
de Angola, sobretudo o negro, vtima sempre e ainda maior de
discriminao. (CHAVES, 1999, p. 39)

As agitaes contra a dominao colonial ganhavam fora e peso e um


fortalecimento do sentimento de angolanidade com os desdobramentos da dcada de 1950
que culminam na luta com armas em 1961. A represso do poder portugus a esses artistas
(pois no mais se tratava de um movimento apenas literrio) e a suas obras resultou na
priso de vrios integrantes e tambm em uma produo clandestina (BAYER, 2008). A
literatura de 50 d lugar uma literatura de maquis, uma literatura de detentos. Em 1961,
uma tentativa de invaso priso e libertao dos companheiros desencadeou em
perseguio, fechamento dos rgos culturais e fim de circulao das revistas.
O Movimento pela Libertao de Angola (MPLA)11, formado em 1956, era uma
das organizaes clandestinas que agregavam militantes contra a dominao portuguesa.
Era liderada pelo poeta Agostinho Neto12, que militava pela insurgncia armada contra o
ocupante estrangeiro, e que tambm foi preso durante esse perodo. O fato de o presidente
dessa organizao ter sido um dos expoentes dentre os Novos Intelectuais de Angola
revela a relao particular que o campo literrio teve com o campo poltico na luta pela
libertao nacional angolana. Cabe, aqui, aludir Antnio Cndido quando elenca os
momentos da produo literria:
a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta [a
produo] segundo os padres de sua poca, b) escolhe certos temas, c)
usa certas formas e d) a sntese resultante age sobre o meio. (2008, p.31)

Isto , ressalta-se que o sentido da obra (estendo aqui tambm para a trajetria do
autor) no exclusividade do autor, tampouco seus desdobramentos sociais esto

11

Cabe aqui um parntesis acerca dos demais grupos polticos que se formaram em oposio dominao
colonial. So eles a Unio Nacional Para a Independncia Total de Angola (UNITA) e a Frente Nacional
de Libertao de Angola (FNLA). Ambos tinham orientao poltica antissocialista, mas representavam
diferentes etnias. Apenas o MPLA era de orientao socialista. (BAYER, 2008).
12
Fundador da importante Revista Mensagem, em 1951, que agrupava as produes de jovens escritores e
artistas afinados com as propostas dos Novos Intelectuais de Angola.

reservados s suas intencionalidades. As correlaes entre obras literrias e processos


sociais perpassam a condio do autor, cuja posio social um aspecto da estrutura da
sociedade (Cndido, 1965), mas tambm o excedem e o transformam.
A conquista da independncia data de 1975, aps um longo e violento perodo de
revolta popular organizada em grupos armados. no dia 11 de novembro de 1975 que a
colnia formalmente se desvincula da dominao da metrpole, e agora liderada pelo
MPLA (fazendo de Agostinho Neto o primeiro presidente na Angola ps-independncia).
Em seus primeiros anos de independncia, os conflitos internos, entretanto, somaram-se
s divergncias entre o partido do governo (a organizao MPLA) e as demais frentes
polticas nacionais de combate que tambm atuaram na luta armada (UNITA e FNLA),
ocasionando uma guerra civil em que se evidenciava o controle estatal sobre os
direcionamentos polticos e sociais. O sistema poltico angolano caracterizava-se, agora,
pelo socialismo monopartidrio, e vivia uma experincia de economia planificada.13
em 1977, dois anos aps a independncia da Angola, que em Luanda nasce
Ndalu de Almeida14. A Luanda das dcadas de 1970 e 1980 foi onde Ondjaki viveu sua
infncia e juventude. Filho de classe mdia, mestio (como ele mesmo se identifica em
diversas entrevistas, por ser descendente de portugueses e angolanos), afastou-se da
cidade para estudar, aos 16 anos, Sociologia na universidade de Lisboa, onde tambm
estudou teatro, pintura, conheceu autores de diferentes pases (foi l que teve seu primeiro
contato com obras brasileiras, por exemplo), e aproximou-se de estudiosos da cultura e
da questo africana. Na entrevista dada ao Roda Viva15, Ondjaki comenta:
Quando eu fui para Portugal, pensei que iria ter contato com a cultura
portuguesa, mas, o que de fato me surpreendeu e agradou, foi que eu
tive contato com outras comunidades africanas. Foi em Lisboa que eu
fiz amizade com caboverdianos, com santomenses, com
moambicanos. Isso foi muito bom. Foi em Lisboa que eu tomei
conscincia da importncia, para a amizade e para o dilogo, da lngua
portuguesa. Porque o que ns temos em comum no a poltica, a
lngua portuguesa, e isto muito bom. muito fcil. Facilita encontros
entre as pessoas. Essa a grande influncia em Lisboa. (ONDJAKI,
2007)

13

A Guerra Civil renegociada muitas vezes, mas os conflitos polticos no cessam. S em 2002 assinado
um tratado de paz definitivo mas ainda assim sucederam conflitos posteriores.
14
Ondjaki o pseudnimo de Ndalu, utilizado desde que comeou sua carreira como escritor. Segundo
ele, este teria sido o seu nome, uma palavra em Umbundu, um dos dialetos angolanos, e significa
guerreiro.
15
Entrevista concedida ao programa Roda Viva em 15/01/2007, com transcrio disponvel no stio
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/238/entrevistados/ondjaki_2007.htm. Acesso 10/11/2014.

A posio de que dispunha socialmente no exatamente expressa nesse trecho,


mas evidente pela sua trajetria linear, sem conturbaes que no a instabilidade do seu
lugar de origem tornou possvel a ampliao dos seus capitais sociais e sua mobilidade
no campo literrio.

16

Ao mesmo tempo, a discusso acerca de uma identidade coletiva

frente sua identidade pessoal s foi possvel a partir desse encontro com demais
comunidades africanas. Em determinado momento dessa mesma entrevista, Ondjaki
comenta a dificuldade de circulao dos livros da comunidade lingustica portuguesa
entre os pases africanos so, na realidade, sempre mediados, deixando a questo Por
que uma editora angolana no pe os meus livros em Cabo Verde?, dando um exemplo
dessa mediao atravs de editoras portuguesas. No caso da publicao de Bom dia,
Camaradas, Ondjaki comenta:
Esse livro surgiu assim. Surgiu de um convite de um editor. Eu vi, muito
resumidamente, que havia espao, que ele queria um livro, e me disse
que fosse depois da independncia, que caracteriza uma viso
interessante sobre isso: "Eu estou a abrir uma coleo sobre a
independncia, tu tens alguma coisa a ver com isso, tens algum
projeto?". E eu aproveitei aquilo e disse: "Tenho. Tenho uma coisa bem
pensada que vai justamente de encontro a isso". "timo, e demora?".
"No, no demora". Fazia quase um ano que no o via, n? "E quando
tu entregas?". "Em dois meses no mximo...". E eu entreguei dois meses
depois, o Bom dia, camarada.

H tambm a questo dos impostos de circulao dos livros com os impostos


nacionais. Ele afirma Os prprios livros angolanos, se imprimidos no Brasil, ou em
Portugal, ao entrarem em Angola, pagam imposto. O nosso prprio livro..., o que ele
apresenta como justificativa, quando questionado o porqu de ser mais lido fora do seu
pas do que dentro. Chartier, acerca da mediao editorial, fala
Nasce da a ambivalncia fundamental da atividade editorial e do
comrcio do livro. De um lado, somente eles podem assegurar a
constituio de um mercado dos textos e dos julgamentos. So eles uma
condio necessria para que possa ser construda uma esfera pblica
literria e um uso crtico da razo. Mas [...] em virtude de suas prprias
leis, a edio submete a circulao das obras a coeres e a finalidades
que no so idnticas quelas que governaram sua escrita. (2002, p.76)

Mesmo fazendo parte da primeira gerao que cresceu com a guerra civil e seu
violento legado para o imaginrio nacional, Ondjaki traz esse tema em sua literatura de
forma bastante sutil, remetendo ao elemento da histria das mentalidades de que fala

16

O mercado editorial na Angola bastante dificultoso; como Ondjaki menciona nessa mesma entrevista,
apesar de sua primeira publicao ter sido feita por uma editora angolana e publicado inicialmente apenas
em Luanda.

Robert Darnton17, trazendo modos de pensar e vises de mundo na construo da sua


narrativa. A mistura da fico com a autobiografia memorialista remonta Benjamin ao
falar do declnio da experincia (coincidente com o fim da narrao)18, ao retomar as
continuidades entre as geraes e uma tradio comum de palavras compartilhadas. Essa
tradio compartilhada apresenta-se no uso de palavras nas lnguas locais e termos que,
em algumas edies, acompanham glossrios ao final do livro pois de outra forma no
seria possvel compreend-los. Ainda referente idia de experincia, possvel trazer a
estrutura de sentimento de que fala Raymond Williams tambm para tratar dessa
perspectiva ficcional de abordagem de um passado-vivido, mas que carrega sentimentos
em constante transformao na vida cultural e social. Essas contradies entre a
identidade coletiva e pessoal so conciliadas quando existe um sentimento comum de
pertena, algo relativo a um sentido geracional. Segundo ele:

A anlise se centraliza ento nas relaes entre essas instituies


produzidas, formaes e experincias, de modo que agora, como
naquele passado produzido, somente formas fixas explcitas existem, e
a presena viva se est sempre por definio, afastando. (WILLIAMS,
1979, p. 130)

Ao mesmo tempo em que a encomenda do texto sobre determinado tema pode,


em alguma medida, contribuir para a dessacralizao do mito de inspirao do artista,
visto que expe as relaes de objetivao de que fala Bourdieu em As Regras da Arte
(quando o autor objetiva experincias sociais na sua obra, que passa por mediaes), o
aspecto memorialista e predominantemente ntimo da literatura de Ondjaki aproxima o
autor da sua proposta narrativa de retratar a sua Luanda. Como fala Schwarz, o primeiro
passo dado pela vida social, e no pela literatura, que vai imitar uma imitao (1992,
p.36), quando o autor empreende um esforo de ambientao e narrativa local da realidade
que vivia. Apesar disso, de se basear em aspectos biogrficos, como menciona em um
momento da entrevista, Ondjaki confere sua produo a responsabilidade de criar o
seu prprio pas, identificando em sua funo-autor19 a tarefa de produzir imagens e
discursos acerca de sua cidade de origem. Em suas palavras:

Em A Questo dos Livros Passado, presente e futuro (DARNTON, 2010)


Ver O Narrador. Reflexes sobre a obra de Nicolai Leskow (BENJAMIN, 1985)
19
Termo utilizado por Foucault para designar os mecanismos atravs dos quais um nome prprio
atribudo a um texto e no outro o nascimento da autoria, problematizada posteriormente por Chartier.
A Funo autor caracterstica de modo de existncia, de circulao e de funcionamento de certos
discursos no interior de uma sociedade (*)
17
18

Eu via que havia uma situao em Luanda - preciso filmar isto.


preciso mostrar esta Luanda. At para acabar com o folclore. [...] esta
a pluralidade de Luanda. assim nesse momento. Ns estamos a criar
um pas. Ns estamos a estrear um pas. So trinta anos de um pas.
Veja o que isto vai significar daqui a cem, duzentos anos. Que
documentrios se fizeram nos primeiros trinta anos daquela nao, no
? muito importante. Embora eu no consiga convencer as pessoas
com dinheiro disso, no do dinheiro para fazer documentrio.
(ONDJAKI, 2007)

Em Bom dia, camaradas!, a partir da viso de um menino que se vai


percebendo a vida social luandense, as assimetrias entre os interesses de cada um que
convive com a criana e seus significados sociais. A chegada dos cubanos em Angola, a
presena de soldados soviticos pela cidade, as diferenas econmicas entre o
protagonista e seus colegas, o ambiente da escola e a relao dos alunos com os
professores cubanos, as segmentaes espaciais e urbanas que organizavam a cidade, as
lendas e expectativas que se projetavam em um momento de liminaridade20 e
transformaes tudo isso se estende pelo livro atravs de uma narrativa infantil de
rotinas e marcada pela ingenuidade, contrapondo costumes angolanos, portugueses e
cubanos. A exemplo dessa convivncia, em determinado momento do livro, o menino vai
praia com sua Tia Dada, que mora em Portugal:
Fomos dar a volta quase l no fundo, at onde se podia ir de carro; vimos
as barricadas. Isto o que ?, a minha tia perguntou ao camarada Joo.
quartel... um quartel, ele respondeu. Tinha militares soviticos a
guardar a entrada, os soviticos sempre faziam cara de maus, todos
esbranquiados por mais sol que apanhassem, muitas vezes ficavam
assim tipo lagostas.
-Podemos ficar j aqui, no? ela.
-No, aqui no podemos, tia... Vamos l mais para ao p da rotunda.
-Mas no podemos ficar aqui, nesta praia to verzul? ela sorriu
pra mim
-No, tia, aqui no se pode. Esta praia to verzul dos soviticos.
-Dos soviticos?! Esta praia dos angolanos!
-Sim, no foi isso que eu quis dizer... que s os soviticos podem
tomar banho nessa praia. Vs aqueles militares ali nas pontas?
-Vejo sim...
-Eles esto a guardar a praia enquanto outros soviticos esto l a
tomar banho. No vale a pena ir l que eles so muito maldispostos.
-Mas porqu que essa praia dos soviticos? agora sim, ela estava
mesmo espantada
-No sei, no sei mesmo. Se calhar n tambm devamos ter uma praia
s de angolanos l na Unio Sovitica... (ONDJAKI, 2014, p.53)

A partir dessa mistura de naes para no mencionar as questes tnicas que


permeiam as discusses de identitrias na Angola em um mesmo espao e com

20

Na acepo de Victor Turner em O Processo Ritual (1974), quando identifica um momento transitrio
de suspenso e passagem dentro da estrutura de um ritual.

10

diferentes compreenses do que estava a acontecer em Angola, percebe-se que h aqui,


notadamente, a preocupao do autor com a questo de identidade (fala-se em nao, mas
o autor especificamente se dirige comunidade Luandense, e a essa referida pluralidade
que carrega todas essas presenas e contradies). Entretanto, a presena dos soviticos,
a convivncia marcada pela atuao militar e a relao poltica com a Unio Sovitica
no caracterizam uma conformidade de identidade pelo contrrio, demarcam ainda mais
as fronteiras entre aquilo que propriamente angolano e aquilo que no . Tem-se,
segundo Benedict Anderson,
a seguinte definio para nao: ela uma comunidade poltica
imaginada [...] implicitamente limitada e soberana. Ela imaginada
porque nem mesmo os membros das menores naes jamais conhecero
a maioria de seus compatriotas, nem os encontraro, nem sequer
ouviro falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem
de sua comunho (1989, p. 14)

Ainda como traz Kathryn Woodward21, todo conceito de identidade contrastivo


e relacional ele supe um ns e um eles, sendo um a negao do outro, sem a qual
as diferenas expressas na identidade no teriam fundamento. A linguagem, nesse
sentido, um dos instrumentos simblicos atravs dos quais demarca-se a identidade,
ergue-se fronteiras. Para Stuart Hall,
A identificao , pois, um processo de articulao, uma suturao, uma
sobredeterminao, e no uma subsuno. [...] Como todas as prticas
de significao, ela est sujeita ao jogo da diffrance [...] uma vez que,
como num processo, a identificao opera por meio da diffrance, ela
envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcao de
fronteiras simblicas, a produo de efeitos de fronteiras. Para
consolidar o processo, ela requer aquilo que deixado de fora o
exterior que a constitui (HALL, 2000, p.106)

Sendo a linguagem um sistema simblico de referida importncia nessa


demarcao identitria, a utilizao de termos locais e tradicionais da cultura oral
angolana possui um significado poltico na literatura de Ondjaki, ao mesmo tempo em
que esttico.
Discutir algumas das questes que permeiam a produo da literatura angolana,
especialmente a obra Bom dia, camaradas, do escritor Ondjaki, nos leva a pensar a
relao entre literatura e sociedade de forma bem complexa. evidente que se faz
Em Identidade e diferena: uma introduo terica e conceitual, na publicao Identidade e
diferena A perspectiva dos Estudos Culturais, organizada por Tomaz Tadeu da Silva, publicado pela
editora Vozes em 2000.
21

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necessrio um aprofundamento em suas demais obras para perceber sua trajetria autoral
e suas nuances conforme vai-se narrando suas memrias e vai sendo narrado por elas,
mas a partir de algumas reflexes aqui postas, pode-se dizer que a questo da identidade
central para situar sua obra no contexto de produo literria em lngua portuguesa,
entendendo tambm que a obra no se esgota e muito menos se limita a essa discusso,
desdobrando a narrativa em vida real, a fico em vida narrada e a vida em vida
imaginada; desses contornos que surgem e se delineiam a complexidade e a
particularidade de uma obra literria.
Um dia perguntaram minha av Dezanove o que era a poesia. Primeiro
ela ficou muito tempo calada, ento pensaram que ela no tinha
resposta. Mas ela depois falou: a poesia no a chuva, o barulho da
chuva. (ONDJAKI, 2013)

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